Filme – Girl

Por Ana Lucia Gondim Bastos

A adolescência é sabidamente um momento de especial complexidade e dificuldades. É momento de encontros e despedidas. De importantes escolhas, e descobertas sobre o mundo e sobre nós mesmos, que se transformam em fundamentais parâmetros identitários: modos de ser, agir e pensar vão nos associando a determinados grupos e nos afastando de outros, projetos de toda ordem começam a ser traçados e o difícil embate entre sonho e realidade vira cotidiano. Independente dos rumos que começamos a escolher para nossas vidas, a escolha sem previsões garantidas faz com que a ansiedade seja inevitável e, como já não se tem mais todas as consequências das escolhas compartilhadas com a família, o peso da responsabilidade costuma ser um tanto assustador. É fácil imaginar que quanto mais esse processo de destacamento da família se distancia das expectativas cultivadas durante a vida até ali, maiores vão se tornando os pesos e as ansiedades tratados de forma mais, ou menos, conflituosas, dependendo de como as relações interpessoais vão sendo estabelecidas. Essa distância pode, e frequentemente se dá, em maior ou menor escala, no tocante às orientações sexuais, escolhas profissionais, estilo de vida ou padrões de comportamento. Há algum tempo, as questões relativas às identificações de gênero, também aparecem nessa lista. Não que seja novidade da contemporaneidade , em 2015, em “Garota Dinamarquesa”, Tom Hooper conta a história de Lili Elbe, nascida em 1882 como Einar Wegener. Contudo, acredito que poucos discordariam ter sido esse um tema raramente discutido, até muito recentemente. Tais questões eram comumente colocadas num mesmo bloco das questões relativas à orientação sexual e ali ficavam, como derivativos dessas. Mas, aos poucos, vamos percebendo o tema vem sendo entendido e tratado de outra forma. Inclusive como possível questão anterior às relativas às orientações sexuais. E vamos conhecendo histórias de adolescentes que passam a escolher, também, se querem ser meninos ou meninas, a despeito da condição orgânica ou do nome de batismo e tratamentos sociais.

Girl (Dhont, 2018) emociona ao trazer a trajetória de uma família depois da decisão de que o filho mais velho passaria pelo processo de mudança de sexo. Lara, que até os 15 anos era um bailarino, passa a ter que transformar o corpo e os movimentos, inclusive, para se equilibrar na sapatilha de ponta, como as bailarinas. A família muda de cidade e Lara chega na nova escola já como menina, mas, a todo momento passa pela dor de não se sentir autorizada a ser. Inevitável pensar na obra de Goffman sobre Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (1981), na qual discute “a situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena”, devido a uma marca à qual tem associado um juízo de valor que torna, quem a possui, desqualificado ou menos valorizado. Nessa mesma obra, o sociólogo Erving Goffman trata do sofrimento daqueles cuja tal marca não é percebida, logo num primeiro contato. Paira sobre eles a ameaça constante de exclusão , pois a qualquer momento pode vir à tona sua condição de estigmatizado. Diz o autor que essa é a angustia de quem vive a condição de sujeito desacreditável, diferente da condição de quem é desacreditado logo de saída. E é assim que acompanhamos Lara, buscando seus momentos de autonomia no mundo adulto, podendo ter sua identidade feminina questionada, e colocada à prova, a todo momento. Por outro lado, acompanhamos o sofrimento do pai, preocupado em defender e cuidar da filha, sem querer priva-la da intimidade e da busca pelas escolhas mais autônomas, próprias do momento de vida. Um filme delicado que nos faz refletir sobre como podemos ajudar adolescentes como Lara e famílias com as de Lara a passarem por esses processos sem, pelo menos, a dor de serem alvos de preconceito tão violento (se é que existe algum que não seja!).

Na linha desse tocante filme, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) fez uma releitura da propaganda O Primeiro Sutiã A Gente Nunca Esquece, que marcou época no Brasil na década de 80, trazendo, dessa vez como protagonista, uma menina trans. Vale conferir!

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