Por Ana Lucia Gondim Bastos
“Mais bonito do que o canto dos pássaros são seus voos
Nem todo canto é de alegria, mas todo vôo é de liberdade”
Mário Quintana
O recém lançado filme de Pedro Alamdóvar, O Quarto ao Lado (2024), dá a sensação de estarmos assistindo a um jogo de um mestre da sinuca, que mira numa bola e encaçapa várias. Cada escolha abre um leque infinito de discussões sobre amizade, coragem, morte, vida, amor, sexo, liberdade, encontros humanos, transformações de realidades, potência, limites sociais ou psiquicos. O filme traz em sua trama o reencontro de duas jornalistas que trabalharam juntas há décadas numa mesma revista. Reencontro que se dá no momento no qual Ingrid faz fama como escritora de livros de auto ficção, falando inclusive de sua relação com a morte, e Martha se encontra numa fase de fim das esperanças de cura de um câncer. Esta última, que fora correnspondente de guerra anos da vida, cobrindo os horrores da luta de cada um para não sucumbir em canários de destruição, agora decide que é hora de abandonar a luta contra o câncer que se espalha em seu corpo, e pede para que a amiga, recentemente resgatada, a acompanhe no desfecho escolhido para sua história. Não pede que assista a sua morte, mas, que aproveitem juntas os últimos dias e que na hora na qual decida ser a última da vida, que tenha alguém no quarto ao lado. Para dar vida a essa dupla de personagens que vai falar sobre a morte não como oposição à vida e sobre laços que tornam os dois extremos, entre os quais a vida acontece, repletos de sentido, Almadóvar escolheu atrizes que traziam na bagagem outros trabalhos que podem fazer pontes interessantes com o atual, enriquecendo tramas associativas, e aprofundando possíveis análises. Julianne Moore, que é Ingrid em “O quarto ao Lado”, em 2014 dava vida à Alice, em “Para Sempre Alice” (Glatzer e Westmoreland), professora de linguistica em Harvard que no auge da carreira precisa lidar com os efeitos do Alzheimer que aos poucos avança e a faz ir sentindo se perder de si mesma. Por sua vez, Tilda Swinton, que se hoje dá vida a um personagem que escolhe o momento de deixar a vida, em 1993 era “Orlando – A mulher imortal” de Sally Potter, baseado no livro de Virginia Woolf. O romance histórico publicado em 1928, e adaptado para o cinema no início da década de 90, fala de um personagem que vive 400 anos, condenado pela rainha a permanecer eternamente jovem (“não desapareça, não murche e não envelheça”, dizia ela), nesse tempo vai aprendendo a poetizar a vida “expressando coisas que alguns apenas sentem” : morte, amor, poesia, política, sociedade, sexo e nascimento num roteiro que nos faz acompanhar Orlando, nas oposições que uma vida comporta, sem envelhecer até que, finalmente depois de transicionar de gênero, pudesse não se sentir presa ao destino, não condenada, mas, liberta. Como não relacionar esses dois personagens, das tantas vidas encarnadas em Tilda Swinton nos mais de trinta anos que separam Orlando de Martha? Da mesma forma que dificil não juntar Alice de Ingrid, personagens que Julianne Moore deu vida? Difícil não pensar que se Alice fosse para sempre não viria Ingrid e que Orlando precisou ser muitos e muitas até a chegada de Martha. A vida acontecendo, as escolhas nos libertando ou nos condenando à repetição do sempre assim das coisas, os encontros e despedidas potencializando transformações dentro e fora de cada um e de cada tempo histórico e social. Sim, o batom vermelho, bem almadoveriano, cabe numa cena de morte e isso não é erotizar a morte, é erotizar a vida na qual cabe uma morte de figurino solar e com o lugar e a hora determinados pelo o dono daquela vida.
Mais uma vez, Almadóvar nos dá uma aula de como cuidarmos da nossa própria vida e da nossa participação na história da vida dos outros, sem a repetição da guerra e do desalento. Acabo esse texto ansiando a hora de poder assistir no cinema “Orlando – minha biografia política”, de Paul B Preciado (2024), tantas vidas que cabem numa só até o fim e quantas seguem sendo vividas depois do fim! A liberdade no horizonte nos faz não ter tempo de temer a morte, nos inspira a seguir atentos e fortes nas tramas das relações e afetos que nos sustentam.
