Por Ana Lucia Gondim Bastos
Devo confessar que, também impactada pelas últimas declarações de Fernando Meirelles sobre sua experiência dirigindo, em Belém do Pará, a série Pssica (2025) para o Netflix*, o fato dos dois protagonistas de O Último Azul, longametragem de Gabriel Mascaro recém lançado, serem interpretados por atores cariocas (com ótimas atuações, diga-se de passagem), me incomodou do início ao fim. Denise Weinberg e Rodrigo Santoro dispensam apresentações ou elogios às carreiras e interpretações brilhantes, mas, na ambientação do filme, totalmente filmado nas paisagens amazônicas e com todas as referências culturais daquela região, o sotaque e mesmo o jeito de corpo sudestino ficam deslocados, além do que, sobrou para os atores amazonidas personagens bem coadjuvantes, porque inclusive a fiha da protagonista é interpretada por outra maravilhosa atriz, Clarissa Pinheiro, com seu sotaque pernambucano (talvez facilmente confundido pelos sudestinos como sotaque do norte. Só que não, né?!). Enfim, considerei uma pena perdermos a oportunidade de apresentação do norte com seu povo e sotaque naquele cenário exuberante, num filme de roteiro tão tocante.
Feita essa ressalva, Mascaro nos traz mais uma ficção científica distópica, que, sem dúvida, dá contorno a incomodos bem presentes em nossos cotidianos. Na primeira, Divino Amor (2019) , filme estrelado, inclusive, pela atriz paraense Dira Paes, o diretor revelava um caminho assutador que as eleições daquele ano nos apontava com o recrudecimento da extrema direita, apoiada por um eleitorado influenciado pelo cristianismo evangélico, dizendo defender os valores de Deus, da pátria e da família. Mais uma vez, agora em O Último Azul (2025), Mascaro nos aponta precipícios para os quais vamos nos dirigindo enquanto sociedade, incapazes de imaginarmos novos futuros possíveis. O filme trata exatamente sobre o futuro. Se Divino Amor começa falando de um tempo no qual a principal festa nacional deixa de ser o Carnaval e passa a ser a da espera pelo Messias, O Último Azul, inicia com uma faixa, puxada por uma avião, na qual traz a mensagem “Futuro para todos”. Fala de um momento no qual idosos devem ser levados para colônias afastadas, onde isolados da sociedade, darão espaço para que os jovens da família não se preocupem com eles. Tratados como um bloco indiferenciado, como acontece sempre que se desumaniza um grupo social, recebem tratamento massificado (todos devem usar fraldas e receber uma mochila com os ítens que podem precisar na colônia ou no trajeto até lá). A administração burcrática dessa política pública é bem marcante e os cata velhos (carros de polícia destinados a não deixar que escapem) circulam por todos os lugares. Neste contexto é contada a história de Tereza, funcionária de um açougue especializado na carne e pele de jacaré (caça legalizada naquele futuro descrito). Ela descobre estar prestes a ser levada à colônia de idosos (lugar de condições desconhecidas para quem não chegou sua hora), pois o limite de idade para estar fora de tal espaço acabara de baixar de 80 para 75 anos. Na pressão que começa a se estabelecer em função desse prazo, a protagonista se percebe com desejos não realizados, como, por exemplo, o de voar de avião. Imbuída de realizar este feito antes de ser, compulsoriamente, retirada de sua rotina, acaba se jogando numa aventura nos rios e povoados amazônicos que vai fazê-la voar muito mais alto, como sujeito desejante. O que, para a administração pública, foi tido como fim do caminho, para Tereza, fora das câmaras frigoríficas e do trabalho de repetição, foi tempo de descobertas: das mais íntimas às mais compartilhadas com pessoas de seu território. Aprendeu a dirigir os barcos que a levaria rios afora, conheceu gente que a ajudou a buscar novas formas de olhar para fora, transformando seu mundo interno. Passamos o filme todo acompanhando leitos de rios de dimensões amazônicas, rios que, com certeza, uma hora chegarão ao mar, mas, que enquanto não chegam passeiam por entre matas e assistem nasceres e pores do sol lindíssimos! Nesses trajetos vamos nos deparando com a beleza da vida que é, justamente, não sabemos quando o rio da existência acabará, mas, por outro lado percebermos que enquanto há vida, há possibilidade de transformação de realidades, tanto internas quanto externas. Nada mais interessante ao sistema de manutenção do status quo que os futuros estejam inexoravelmente determinados e, junto com estes acimentamento de margens, que novos futuros não possam ser sonhados e outras possibilidades de vida experimentadas. Mas, Tereza nos faz sair da sala de cinema certos de que todo controle não passa de ilusão e de que a velhice não é tempo de predomínio de Thanatos… pelo menos não o é para quem se permitem seguir, banhado por Eros, sonhando com novos voos!
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