literatura e cinema – Uma estranha forma de vida na palavra que resta

por Ana Lucia Gondim Bastos

Em tempos de tramitação de um projeto de lei que proíbe o casamento ou reconhecimento de uniões estáveis homoafetivas (aprovado por 12 votos a 5 na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados brasileira) chega aos cinemas um curta metragem do aclamado diretor espanhol Pedro Amadovar, “Estranha forma de vida”( 2023), que traz em seu roteiro o reencontro de dois antigos amantes. O filme de faroeste começa com a voz de Caetano cantando a música de mesmo título de Amália Rodrigues:

“Que estranha forma de vida
Tem este meu coração
Vive de vida perdida
Quem lhe daria o condão
Que estranha forma de vida…”

O filme segue em inglês, com os excelentes Pedro Pascal e Ethan Hawke como protagonistas de um reencontro amoroso depois de 25 anos e um deserto os separando da estranha forma de vida que seus corações os impeliram a terem que dar conta, num mundo no qual não cabe um amor homoafetivo.

“Coração independente
Coração que não comando
Vives perdido entre a gente
Teimosamente sangrando
Coração independente (…)

Se não sabes onde vais
Para deixa de bater
Eu não te acompanho mais”

É um feminicídio, um amor de pai, um compromisso de irmão que os levam a atravessar o deserto que os separa para o reencontro.

Tão longe e tão perto dali, dois moços do sertão nordestino brasileiro, Raimundo Gaudêncio e Cícero, se encontram na moita do “A Palavra que resta” de Stênio Gardel (2023). “Na moita mesmo se escondiam dos outros e se mostravam um para o outro. Homem e homem, e se entendiam muito bem, se gostavam. Gosto bom que deixava um ranço arranhando as ideias”. Violentamente os dois foram afastados e outros desertos os separaram. Mas, Cícero deixou uma carta para Gaudêncio. Carta que Gaudêncio guardou uma vida inteira de surras e acusações: “Gente torta, povo imundo, foi isso que o pai lhe disse. Sujo. Não de terra, nem de lama, nem de areia e sangue como estava agora. Não era sujo na pele, do lado de fora. Era dentro, lá onde era”. E assim cheio de cicatrizes, foi com a carta pela estrada que o afastou de seu lugar de origem e todas suas referências, para que seus familiares não precisassem dele se envergonhar. Com ele a carta e, quem sabe, a primeira estrofe da música de Amália:

“Foi por vontade de Deus
Que eu vivo nesta ansiedade
Que todos os ais são meus
Que é toda minha a saudade
Foi por vontade de Deus”

Mas, se Gaudêncio não conhecia a letra da música Estranha forma de vida, também não conhecia letra alguma, sofria da exclusão, também, por ser um homem analfabeto. Vergonha de ser quem é, vergonha por não o deixarem ser. Foi num encontro, não menos violento, com alguém que tinha cicatrizes ainda mais amostra, com Francisco que era Suzzanny, que um dia ele pôde viver um outro tipo de amor, que passou da violência aos cuidados mútuos, pôde deixar de ser caminhoneiro para ser costureiro, cerzindo tecidos que favoreciam o pensar: “Quando a gente sai na rua é desse jeito, fica segurando minha mão, ainda hoje tem gente que estranha, homem velho de mão dada com travesti velha, uns cochichando de um lado, outros olhando atravessado de outro, deixa estranhar, um dia eles aprendem, eu aprendi, eles aprendem, mas tem que querer, querer sair da ignorância”. Tomou a decisão de ver o mundo de outro jeito, foi aprender a ler aos setenta anos para atravessar um deserto, reencontrar Cícero através da carta, encarar o que nela poderia conter. Parece final feliz, mas não é. Nenhum final é feliz nesse mundo que o amor não cabe de qualquer jeito. O texto é bonito, mas não por conta do sofrimento, não precisa ser sofrido para ser bonito, definitivamente, não. A beleza está no olhar de Almodovar para o amor dos cawboys, e no de Gardel para o potencial amoroso de Gaudêncio. bell hooks explica em “Tudo sobre o amor: novas perspectivas” : Quando escolhemos amar, escolhemos nos mover contra o medo – contra a alienação e a separação. A escolha por amar é uma escolha por conectar – por nos encontrarmos no outro. E seus autores amam profundamente seus personagens e buscam veementemente a conexão com os seus espectadores/leitores. E é ali que a beleza reside: no amor e não na violência, tenho convicção. Gaudêncio precisou esperar uma vida inteira para se conectar ao que sobrou de Cícero, em sua vida. Para isso, precisou de muito amor e do amor de muitos personagens que foi encontrando na estrada. Antes reproduziu muita violência. Violência contra o outro que precisava manter como estranho a si. Termino me perguntando por quanto tempo ainda teremos que ser cúmplices dessas histórias que não estão no velho oeste ou nos sertões de outrora? Tudo tão perto e tão dentro de cada um de nós! Nada tão estranho, nem o amor e nem a violência. Estranha forma de vida é a de seguirmos submetendo o amor à violência. Basta!

Referências bibliograficas

Gardel, S A Palavra que Resta . São Paulo: Cia das Letras, 2023

hokks, bell Tudo sobre o amor: Novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2021.

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