Por Ana Lucia Gondim Bastos
Todd Field, mesmo diretor de Pecados Íntimos (2006), volta às salas de cinema com outro filme que traz em sua trama, de forma muito especial e intrigante, a expressão possível de toda particular complexidade dos personagens, em seus contextos sociais. Tár (2022), traz uma personagem central muito forte, que fica enorme, numa atuação de tirar o fôlego de Cate Blanchett. O filme começa com ela mostrando todo seu controle de cena, assertividade e segurança diante do público estupefato, num programa de entrevista que apresenta, detalhadamente, o extenso curriculo de Lydia Tár, primeira diretora musical e maestrina da Filarmonica de Berlim, profissional premiadíssima, com passagem pela Amazônia peruana, como etnomusicóloga. Ou seja, uma mulher que conquistou espaços predominantemente ocupados por homens, ganhando muito prestígio, reconhecimento e poder. Além dos predicados e feitos profissionais que já desafiam muitos ditames da sociedade patriarcal, também no aspacto familiar, a protagonista coloca em xeque valores machistas/heteronormativos tendo estabelecido um núcleo familiar homoparental com a violinista da orquestra, Sharon Goodnow (papel de Nina Hoss). Tudo isso, no entanto, não garante que Lydia tenha se mantido em permanente questionamento e revisão de padrões comportamentais culturalmente estabelecidos. Em seu roteiro, Field toca em pontos delicados e extremamente marcantes da contemporaneidade. Aliás, esse aspecto de discussão social muito atualizado, dá ainda mais a veracidade à personagem que pós pandemia está às vésperas do lançamento de seu livro de memórias e a uma gravação histórica da quinta sinfonia de Mahler, finalmente, com todos os músicos de uma orquestra juntos numa sala de concerto. A juventude composta de sujeitos forjados em tempos de incremento e solidificação das redes sociais, com tudo o que pode trazer de aberturas e fechamento de horizontes, já não se coloca da mesma forma frente à geração que a antecede. Lidya Tár já não consegue manter o mesmo domínio e fascínio de sues aprendizes e assistentes, apesar do grande reconhecimento de seu talento e de sua obra. Da mesma forma, a extensão das consequências de seus atos podem ganhar proporções de vida ou morte devido ao alcance extraordinário, através das mídias hoje existentes. Será possível seguir a vida, após o que vem sendo chamado de cancelamento social? Se, por um lado, a juventude está cada vez mais questionadora em relação “ao sempre assim” das coisas, por outro a sensação de beco sem saída parece aumentar, tendo em vista o crescente índice de suicídio entre os jovens. Se, por um lado a geração mais velha está cada vez mais tendo que se adaptar ao movimento cultural estabelecido pelos questionamentos do que até hoje foi naturalizado, por outro, muitas vezes o resultado da demora adaptativa é o isolamento e a falta de espaço para seguir seu desenvolvimento profissional e social. Aliás, a ideia de envelhecimento, ao que parece, atualmente, está muito ligado às possibilidades de seguir acolhendo novas propostas socioculturais, se transformando com elas e as transformando sem a pretensão de estacioná-las. Para isso uma auto revisão constante, consciente e deliberada, entendendo os aspectos estruturais da nossa sociedade que, necessariamente, nos atravessa e nos constitui, faz-se de primeira importância para seguirmos sujeitos de uma história, sem becos sem saída.
Nesse momento volto ao, já discutido aqui no blog, e grande ganhador do Oscar deste ano, que, por sinal, competiu em muitas categorias com Tár, Tudo em todo Lugar ao mesmo tempo (Daniel Kwan e Daniel Scheinert, 2022). O filme que deu a estatueta a atores de origem asiática e, assim, fez o palco da festa do Oscar mudar um pouco de cara, traz um roteiro com nova linguagem, comportando multiversos quase sempre desconexos e desconsertantes. Quem sabe Tár e Cate Blanchet terem perdido a estatueta para os jovens Daniels, que iniciaram a carreira em vídeo clipes, e para Michelle Yoeh, com sua personagem imigrante chinesa nos Estados Unidos, não estejam apontando caminhos de um novo mundo? E quem sabe até os mais resistentes não possam gostar, se conseguirem se abrir para um movimento histórico que já em curso e , como todo movimento histórico, não tem volta? Particularmente, gostei destas escolhas e, devo confessar, que não sem algum esforço, gosto cada vez mais do “Tudo em todo Lugar ao Mesmo Tempo”, assim mesmo sem vírgula, que tem se colocado como imperativo.
