Por Ana Lucia Gondim Bastos
“Tudo o que volta a viver dói”, diz Amy Denver personagem do filme de Jonathan Demme (1998), baseado no romance de Toni Morrison (1987). Cuidando dos pés escalavrados de Sethe (papel de Oprah Winfrey), escrava em fuga, Amy a encontra num sem lugar da cultura, evidenciado pelos cabelos e roupas em desalinho, num contexto de meio de mato, que ambas personagens compartilham. Mas, é ali que o encontro solidário se dá. Uma branca e outra negra, na moldura histórica do sul dos Estados Unidos nos idos de 1870. Homi Bhabha descreve a narrativa como “a história de uma mulher que é, ao mesmo tempo, a narrativa de uma história afetiva histórica de uma esfera pública emergente, tanto de homens como de mulheres”(p.20). Assombrada por fantasmas que uma vida de escravidão a fez criar e acalentar, Sethe é impossibilitada de os inscrever na história, tanto individual quanto coletiva, inclusive, para saber a que vieram e para saber sobre suas ancoragens passadas. Lembra-me Benjamin referindo-se à volta silenciosa dos combatentes da Primeira Guerra Mundial que, segundo o autor, voltaram “mais pobres em experiências comunicáveis”, incapazes de narrar o que viveram, de simbolizar a experiência.
Mas, é quando um amigo vem visita-la e Sethe o deixa entrar em sua casa-mundo assombrado de tristeza e dor sem-nome, que tudo começa a se movimentar e a viver. A história está perdida, estilhaçada, mas ela sabe que é seu bebê morto, parte dela que lhe foi negada, que a assombra. Como contar essa história?
A entrada do outro na cena possibilita o encontro transformador e novos contornos se estabelecem. Tudo dói muito, no filme que fala de coisas que voltam a viver. As cenas de sexo explicitam as marcas do açoite nas costas dos amantes. Gente que foi tratada como bicho e que resgata a possibilidade de contar histórias e, junto com elas, resgata o sentimento de um viver criativo.
“Todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou contamos histórias a respeito delas”, diz Isak Dinesen. Talvez por isso sejamos criaturas literárias e como tais “devemos nos preocupar com a compreensão da ação humana e do mundo social como um momento em que algo está fora do controle, mas não da possibilidade de organização”
(Bhabha, p. 34)
Referências bibliográficas;
O Local da Cultura – Homo Bhabha, editora UFMG (2013)