Por Ana Lucia Gondim Bastos
Como filme, O Rei do Show (Gracey, 2017), é um musical bem feito e com todos os ingredientes para encantar os amantes do gênero: Belas canções (trilha sonora original assinada pelos premiados Justin Paul e Benj Pasek), excelentes atuações, elenco contando com figuras queridas de outros carnavais (ops, musicais!), tema cheio de encanto e magia, além de coreografias memoráveis! A história bem romantizada de Barnum, considerado pai do circo moderno, encarnado por Hugh Jackman (nosso inesquecível Jean Valjean de “Os Miseráveis”, 2012), dá margem para que todos os ingredientes, citados acima, sejam explorados de forma incansável, como, realmente, o são. O Rei do Show é P.T. Barnum, filho de alfaiate que, precocemente, torna-se órfão e sofre todo tipo de privação e humilhação até conseguir engendrar um empreendimento que oferecesse a tão ambicionada ascensão social. Sem muitos escrúpulos, o carismático “Rei do Embuste”, traz pro palco aqueles que são socialmente rejeitados, num show de variedades, do qual são convidados a fazer parte, no lugar do exotismo ou dos truques que transformam tudo em exagero e excentricidade. Fica claro no filme, apesar do tom romantizado do roteiro, que a visibilidade e emprego oferecidos aos protagonistas do show (ainda que enquanto figuras bizarras e dignas de espanto e risadas) era um ganho secundário para o empresário que sonhava fazer parte do mundo dos ricaços, outrora patrões de seu pai. Mundo para o qual não basta dinheiro para entrar, para um filho de alfaiate será sempre mais difícil. Um filho de alfaiate que se sujeita a se misturar com gente “menos digna” de ser gente, pior ainda. A sede de dar a volta por cima e participar dos círculos mais abastados faz com que se aproxime, primeiramente, de Phillip Callyli (Zac Efron, o popular Troy Bolton, de High School Musical, 2006 e o galã Link Larker de Hair Spray, 2007), um jovem diretor de teatro que vive nas altas rodas e, depois, de Jenny Lind (Rebecca Ferguson), uma cantora revelação na Europa que Barnum revela aos EUA, nesse momento, afastando-se de seu circo e de sua família.
Bem, mas pra além desse entusiasmante lalaland de todos os musicais, a questão dos lugares sociais cristalizados, para alguns, ou do não lugar, para outros, leva a importantes e, infelizmente, ainda atuais, questões, dignas de nota. Lembrei de uma personagem de Valter Hugo Mãe, em O Filho de Mil Homens (2016). Uma de suas muitas personagens que têm precipícios cavados para dentro de si mesmo, personagens carregados de ausências e silêncios, no caso, uma anã que vivia num pequeno povoado e de quem todos se apiedavam. Uma coitada a quem a benemerência só se voltaria se ali permanecesse, “como se a anã fosse digna apenas enquanto permanecesse cabisbaixa e gemendo, subserviente perante a generosidade social, sem amor, apenas piedade”(35). Quando personagens como ela tomam o lugar à frente dos holofotes, usando maquiagens para realçar suas belezas, roupas brilhosas ou mesmo se soltam suas vozes e corpos, o incomodo é logo manifestado pelo riso jocoso e humilhante ou pelo ódio destrutivo e devastador. Como ousam ser gente feita pra brilhar e não pra morrer de fome? Por outro lado, como um filho de alfaiate chinfrim pode querer misturar-se às altas rodas da sociedade? Dizem-lhe sem classe, sem modos, sem gosto e, para ele, fecham as tão sonhadas portas para um mundo lindo, limpo, cheio de charme e beleza. O filho do alfaiate terá sempre que se sentir um embuste, se quiser ser outra coisa além do tolerado a um filho de alfaiate, e isso, na melhor das hipóteses. Saí triste do cinema ao constatar a atualidade disso tudo, mas, assim como Hugo Mãe, sou filha de mil homens e de mil mulheres que não me deixam perder a esperança de um dia ver tudo bem diferente. Pessoas que me ensinaram a não desqualificar pessoas, não achar ninguém melhor do que ninguém, seja lá porque motivo. Gente que faz diferença em realidades de ausências e silêncios. Que pensam ser possível viver num mundo no qual todos tenham direito a sonhar e a se encantar com as belezas do mundo e das relações. Termino, então, este texto, como Hugo Mãe termina seu livro “sei bem que sou filho de mil homens e mais de mil mulheres. Queria muito ser pai (mãe) de mil homens e mais de mil mulheres.”
Mãe, Valter Hugo – O Filho de Mil Homens. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016