Por Ana Lucia Gondim Bastos
Minha ciranda caiu das mãos da criada descuidada*. Caiu e se fez em mais pedaços do que havia barro compondo personagens em volta de um músico. Era uma pequena escultura pernambucana, trazida com zelo durante um retorno à cidade natal, por um moço que viu no nordeste a possibilidade de realizar seus sonhos. Um rapaz jovem, idealista, que quer ser médico, trabalhar com saúde pública e fazer diferença na vida de gente que vive como se suas dores doessem menos, gente tratada como invisível, como espécie de menor valor. Um moço daquela rapaziada que faz a gente ter fé na fé da moçada que não foge da fera e enfrenta o leão**. Passou no vestibular em Recife, fez a mala e se mudou para lá para ser aquele médico que sonha, um médico que poucos sonham ser e muitos precisam ter. Na primeira volta a São Paulo, me comunicou que estive com ele, na ciranda de afetos que o levou a Pernambuco, com o gesto de tirar da mochila aquela esculturinha delicada, intacta, dizendo: essa eu trouxe para você. A esculturinha ficou lá no consultório, contando essa história silenciosa, mas que muitos pressentiam ao entrar em contato com aquele espaço, repleto de objetos e livros com histórias guardadas. Mas, um dia, na volta de um fim de semana, estavam lá só os cacos e um bilhete que prometia reparo. Fiquei triste, mas, sabendo da fragilidade do material que é o barro de fazer gente, fui tolerante à criada descuidada. Semanas depois, num outro retorno ao trabalho, lá estava minha ciranda, com os pedaços colados. Uma ciranda recomposta, ou uma tentativa de ciranda, uma ciranda des(re)construída. Alguns braços já não se encontravam, outros nem existiam, mas a ciranda estava lá, de pé, novamente. Aquela bando de pedaços desconexo, voltava a buscar um nexo, um nexo inventado por aquela que, num descuido, pôs tudo a perder e depois, imbuída da confiança que foi lhe foi dada, pelo simples fato dos cacos não terem sido sacudidos do capacho e jogados fora, buscou um novo arranjo para as peças, um arranjo possível. Ao me deparar com a nova ciranda, num primeiro momento senti falta daquela primeira, com músicos e todos de mãos dadas. Mas, aos poucos fui valorizando o processo e até a forma final. Percebi que, às vezes, mesmo sem mãos a gente pode buscar um jeito de ninguém soltar a mão de ninguém! E assim, segue o baile, com a presença da minha ciranda contando mais história silenciosa do que nunca! Agora, me sinto presenteada por duas pessoas que nem se conhecem, talvez três: o artesão, o moço que vai virar médico e a senhora que não desistiu do reparo. Acho que até estou gostando mais dessa história de ciranda, história com lastro, contando com mais gente que segue em frente e segura o rojão. É nessa ciranda que quero estar, hoje, tenho convicção. Obrigada pelo convite, a todos os envolvidos!
Referências:
Apontamento Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944
E vamos à luta – música de Gonzaguinha
