Filme – A Favorita

Por Ana Lucia Gondim Bastos

Já tinha tido contato com o humor ácido e desconcertante do diretor grego, Yórgos Lánthimos, em O Lagosta, ficção científica exibida, em primeira mão, no Festival de Cannes de 2015. Agora, o diretor, aposta no passado, num filme de época, que retrata a corte inglesa do século XVIII, sob comando da frágil e autoritária Rainha Anne (papel que rendeu o Oscar de melhor atriz para Olivia Colman), em A Favorita. Do futuro distópico de O Lagosta ao passado sombrio de extrema, e naturalizada, desigualdade social, o diretor não poupa, ao espectador, a visão das bizarrices que nossas organizações sociais nos fazem deixar barato, percebendo atrocidades como fatos corriqueiros de menor  valor, apresentando um cenário patético e triste, no qual a potência de transformação criativa se perde e a poesia é impedida de acontecer, como o amor de brotar. Os exageros da nobreza, tanto no que diz respeito às ostentações nas vestimentas, nas decorações e suntuosos palácios, quanto nas relações de poder,  pelas lentes de Lánthimos, não permanecem como pano de fundo, ao contrário, saltam aos olhos. Em alguns momentos, inclusive, a direção de fotografia usa uma lente que distorce a imagem, de forma a nos colocar como se tivéssemos acesso à cena através de um grande olho mágico. Nos faz pensar ser difícil acreditar que aquilo tudo fosse, mesmo, daquele jeito: com pessoas gastando tempo e dinheiro público com caprichos fúteis e ostentações sem medida, enquanto decidiam assuntos importantes para a população em geral, como as estratégias de guerra ou aumento de taxas e tributos, de forma leviana, utilizando critérios absolutamente particulares e , muitas vezes, ligados a favores, inclusive de ordem sexual. Claro que imediatamente após esse primeiro pensamento, vem o segundo, ainda mais angustiante: e não é assim, que segue acontecendo? A lógica da manutenção do poder pautado em privilégios concedidos, ou retirados, pelos mais poderosos, a quem os serve, produz toda uma cultura de cobrança e busca por favores, de subserviência e autoritarismo, que, muitas vezes, parece uma teia de onde não se pode escapar. A personagem de Emma Stone, Abigail, é o grande exemplo, no filme. Uma moça que perdeu o título de nobreza, por conta, da vida de vícios do pai, e busca através do contato com uma prima, a Duquesa de Marlborough (Rachel Weisz), a possibilidade de viver perto da corte. A prima duquesa, Sarah Churchill, era a amiga mais próxima da rainha e tinha muito poder sobre as decisões da mesma. Instalada no palácio da rainha, inicialmente, como uma empregada qualquer, Abigail vai ganhando espaço, junto à duquesa e à rainha, que logo descobre, serem também amantes. Imbuída do objetivo de não voltar a uma vida de humilhações e falta de escolhas, Abigail se torna uma grande estrategista e manipuladora, no espaço que Sarah abre, afastando-se dos cuidados íntimos da rainha, num momento no qual se vê mais envolvida com as decisões da guerra contra a França. A disputa do lugar de favorita da rainha é um “prato cheio” para que Lánthimos não deixe dúvidas do quão doentios são esses ambientes e essas relações. Pelas lentes dele podemos perceber o que está por trás das aparências de tudo o que somos levados a almejar, imersos na lógica dos privilégios. Lembra-me uma passagem do documentário Janelas da Alma (Jardim, 2001), quando, entrevistado, Saramago conta acerca do que aprendera nas suas primeiras visitas ao teatro imperial de Lisboa: diz que costumava assistir às peças nos lugares mais baratos que eram os mais altos do teatro, de onde era possível ver a parte de trás da imensa e reluzente coroa que adornava o camarote real, que, da plateia, parecia algo muito suntuoso e belo, mas, que, por trás, era oco e tinha teias de aranha e muita sujeira. O autor, disse ter, ali, tirado uma importante lição para vida, a de que “para se conhecer algo, há que se dar a volta toda!”.

E acho que é exatamente esse o exercício que o diretor grego anda tentando nos sugerir. Tomara que ajam adesões, estamos precisando, mais do que nunca!

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