Documentário – Espero sua (Re) Volta

Por Ana Lucia Gondim Bastos*

O documentário, recém lançado, Espero sua (re) volta (Capai, 2019), sobre o movimento estudantil que ganhou força a partir das ocupações das escolas estaduais de São Paulo, em 2015, logo me remeteu à conferência da escritora nigeriana Chimamanda Adichie : O Perigo da História Única.

O primeiro motivo, talvez o mais óbvio e imediato, foi pelo fato do roteiro contar com três narradores diferentes, para contar essa história. Deixando claro que se trata de uma realidade formada por vozes múltiplas, experiências múltiplas, construções e entendimentos múltiplos. Assim como são muitos os estudantes, as escolas e os processos que deram corpo ao movimento. E todo movimento político ou toda realidade social são formados por uma diversidade que, quando considerada, tanto nos faz escapar de preconceitos e estereótipos, quanto podem, como um dia falou Angela Davis, constituirem fagulhas criativas para construções de novas realidades.

O segundo ponto, diz respeito à importância de não se começar uma história pela segunda parte. Chimamanda, citando o poeta palestino Mourid Barghout, dá a receita de como deslegitimar a luta de um grupo, desapropriar um povo ou transforma-los em vilões: É só começar a contar o processo de colonização das Américas com as flechas indígenas apontadas para os europeus , ao invés, de começar com a chegada deles, seus motivos e estratégias de dominação. Nesse sentido, e, não só nesse, mas muito nesse sentido, Espero sua (Re) Volta é de uma importância fundamental, não permitindo que uma história única seja contada com estudantes “invadindo” escolas públicas, mas, os deixando contar o que aconteceu para que decidissem ocupar suas próprias escolas. E, aqui, escolher o termo invasão ou o ocupação, faz toda a diferença.

O terceiro ponto de referência ao Perigo de uma História Única é o que toca no Lugar de Fala. O documentário não é pautado na fala de especialistas em educação ou políticas públicas. Nele, o discurso de autoridade é o dos jovens que protagonizaram o movimento. A escola é deles, a voz é deles, a história é deles e o protagonismo de ação é deles. Então, o filme é deles e não sobre eles. Assim, o roteiro e a direção do documentário não se deixaram cair nas armadilhas das histórias únicas, a partir das quais somos formados.

Isto posto, vamos falar sobre possibilidade de saúde mental, nos contextos apresentados. Inicialmente é necessário considerar que não é possível pensar nesse assunto fora da indissociabilidade da tríade Homem/Sociedade/História. Hannah Arendt, na obra A Condição Humana, discute longamente acerca da nossa inescapável e paradoxal experiência de pluralidade, sendo, cada um de nós, singular e irreptível. Lembra-nos que os romanos usavam como sinônimos : Viver e estar entre os homens ou Morrer e Deixar de estar entre os homens. Então, quer dizer que nossa condição humana é a de seres políticos e de cultura e que, portanto, para pensarmos em saúde, precisamos contar com a possibilidade de não cindirmos nossos aspectos, plural e singular. Contudo, vivemos em tempos sombrios e nada facilitadores para tal necessária integração. A violência de Estado sobre o cidadão, a opressão a toda e qualquer movimentação que não o restrinja à condição de consumidor, faz com que vivamos tristes, assustados e encapsulados.

Nesse sentido, quero terminar minha fala contando o que o título do documentário me fez pensar. Fiquei, muito tempo, lembrando da minha juventude, cujo primeiro voto coincidiu com as primeiras eleições presidenciais, na volta do regime democrático. Sobre nossas lutas, tristezas e alegrias. Mais tempo ainda, passei pensando na juventude atual, do Brasil. Juventude de meus filhos, alunos, pacientes e de toda uma geração que nos sucedeu. Pensei em como nem sempre podemos acompanha-los em suas (nossas) lutas e ocupar as ruas com gritos de protesto. Não podemos, diversas vezes, pelos compromissos, outras vezes pelas desilusões ou cansaço… enfim, pelos preços pagos na vida adulta. A verdade é que, às vezes, vamos juntos, e voltamos juntos para casa e, às vezes, ficamos esperando que voltem. Que voltem de um espaço público cada vez mais hostil, ainda mais hostil para quem mora nas regiões de periferia. Ainda mais para quem é pobre e para população negra.

Que voltem da aula/ Que voltem da balada/ Que voltem das manifestações/ Que voltem das assembleias ou dos rolês. Mas, também, continuamos esperando que se revoltem. Que se revoltem contra o preconceito e que se revoltem contra a opressão que limita seus movimentos e tentam calar sua voz. Para que possam continuar com voz e com voto e para que possam ter corpos alegres e livres para serem quem quiser ser. Esperamos que continuem e que não se calem.

E é com muito amor, esperança e gratidão que faço coro com Eliza Capai: ESPERO SUA (RE) VOLTA!

*texto redigido para o evento de lançamento do documentário, dia 24/08/2019, no IMS (Instituto Moreira Sales). São Paulo/SP
*https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt

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