Por Ana Lucia Gondim Bastos
Desamparo, banalização das injustiças sociais*, dimensão sócio-política do sofrimento**, consequências do rompimento de importantes pactos civilizatórios, a lógica manicomial de exclusão social e de silenciamento de sujeitos, assim como a lógica dos discursos no capitalismo, são ampla e profundamente tratados no Coringa, de Todd Phillips (2019) e de Joaquin Phoenix, diretor e ator, respectivamente, em marcantes, e já premiadas, atuações. E o que acontece quando se nega a possibilidade de existência de sujeitos sociais, do ponto de vista de direitos básicos à vida e ao pertencimento social? Quando se naturaliza o desamparo social e a invisibilidade dos conflitos gerados no e pelo laço social recai sobre o sujeito, responde Mirian Debieux Rosa(2015), seus impasses são individualizados e suas saídas patologizadas ou criminalizadas.
Coringa, personagem, desde sua origem, fortemente inspirado no Gwynplaine, “O Homem que Ri” do ferrenho crítico dos poderosos aristocratas do século XVIII, Victor Hugo (1869), traz, também, a dimensão patética do sorriso constante, esculpido (ou pintado) no rosto daqueles que deverão rir de sua própria desgraça e deixar que os outros se divirtam com ela. São personagens que têm corpos marcados, assim como destinos de sujeitos submetidos a violência plasmada nas relações políticas dos laços sociais. Phoenix fez um trabalho de corpo belíssimo e digno de nota, na construção do personagem. Se em alguns momentos está de ombros caídos cabeça baixa, com riso exagerado de desespero e dor, noutros dança com leveza, segundo o ator, inspirado na estranha arrogância de Ray Bloger (o para sempre espantalho do Mágico de OZ) em “The Old Soft Shoe” (1930)***. A arrogância de quem nega a humilhação, de quem pode flutuar e não sentir a aspereza e a dureza do solo asfaltado sem muito caminho possível, de quem nega a falta de par.
Sem dúvida uma história triste de um personagem trágico. Mas, e quando a gente se dá conta que faz parte de um mesmo enredo? Que Gotham City pode ser Nova Iorque ou São Paulo, cidades nas quais os metrôs estão repletos de Arthurs (personagem que vira Coringa, em determinado momento da vida) e de pessoas que se acham superiores a Arthur? O documentarista Michael Moore, depois de assistir ao filme no Festival de Veneza, declarou: “não é um filme sobre o Trump, é um filme sobre a América que nos deu Trump”****. Claro que ao ler uma declaração dessas, a “carapuça” nos cai como uma luva! Numa das cenas, quando a assistente social precisa comunicar o encerramento do programa no qual Arthur vinha sendo tratado, ela diz: “eles não se preocupam com pessoas como você”, e completa, “nem com pessoas como eu”. E é assim que vamos assistindo “o circo pegar fogo”, nos sentindo jogados à solidão, pelo desinteresse do poder público, numa massa de palhaços patéticos, muitas vezes, sem rosto ou desejo, dançando sem musica e, tantas vezes, rindo de nervoso. Enquanto isso, nas bolhas milionárias, Thomas Wayne cria seu filho com discursos meritocráticos e faz planos de virar político. Qualquer semelhança com a vida real, não me parece mera coincidência. Um filme a ser assistido e amplamente comentado!
Referências:
*Dejours, C. A Banalização da Injustiça Social . Fundação Getúlio Vargas (1999)
**Rosa, Miriam Debieux. Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão sócio- política do sofrimento / São Paulo, 2015 https://psicanalisepolitica.files.wordpress.com/2014/06/psicanc3a1lise-cultura-e-polc3adtica-livre-docencia-maio-2015impresso.pdf
*** https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/filmes/2019/10/por-que-o-coringa-de-joaquin-phoenix-danca-tanto-veja-o-motivo https://www.youtube.com/watch?v=kM8yBTV7BgA
****https://www.brasil247.com/cultura/michael-moore-sobre-coringa-o-maior-perigo-para-a-sociedade-e-nao-ver-este-filme
Ana Lucia, muito bem vinda sua análise desse filme excepcional. Afora a ênfase nos aspectos patologicos da sociedade de nossos tempos, muito me emocionei com as palavras com que vc louva as nuances corporais do ator Joaquin Phoenix. A caracterização nos remete a todo o desamparo a que estamos submetidos nessa era de Trumps e Bozos. Parabéns
CurtirCurtido por 1 pessoa