Sobre desejos recônditos que atravessam os roubos de bonecas e brinquedos no filme “A Filha Perdida” e na nossa  “Psicopatologia da vida cotidiana”

Por Adriana Domingues, Jaquelina Imbrizi e Julia Bartsch

Quem nunca roubou um brinquedo na sua infância? Uma das autoras deste texto lembra-se de ter “pego emprestado” um cineminha feito de papelão, no qual as imagens passavam por um quadradinho, obedecendo uma pequena manivela. Era de uma amiga de sala de aula na educação infantil, que percorria com ela o mesmo caminho de volta para a casa e, a quem, gentilmente, ela pediu para levar o precioso objeto no percurso até chegar na porta da casa da proprietária do desejado brinquedo. Quando chegaram em frente a residência, ela simplesmente disse que o brinquedo era dela e seguiu com passos rápidos até sua própria casa. Não demorou muito para uma das mães bater na casa da “criança-ladra” e o brinquedo foi devolvido. Era um desejo tão grande de ter um objeto tão interessante, – o qual marcou sua paixão pelo cinema até hoje – que ela não mediu esforços em possuí-lo e sem pensar nas consequências. Ela deve ter levado uma bela bronca da sua mãe, mas a lembrança da reprimenda foi apagada de sua memória. Hoje, o roubo se refere a um traço de memória divertido de sua infância na qual se o objeto é tão desejado, qualquer estratégia para obtê-lo seria válida, será? Árduo aprendizado que faz parte do nosso processo de amadurecimento que é o de perceber que as coisas são bem diferentes no mundo adulto, será?

Mas um adulto seria capaz de roubar um brinquedo de uma criança? Este é um dos enigmas expostos no filme “A filha perdida” (2021), cuja protagonista Leda (Olivia Colman) recolhe, sem ninguém perceber, uma boneca que está ao lado de uma cadeira de praia, em frente ao mar da Grécia, lugar onde ela escolheu usufruir de suas férias como professora universitária, escritora e pesquisadora de poesia italiana. Ela está sozinha, por escolha própria, e observa as pessoas na praia, até que seus olhos se deparam com uma mãe (Dakota Johnson) cuidando de sua filha (a dona da boneca), uma criança de cinco anos ou um pouco mais de idade, cuja dependência da atenção de sua mãe é enervante (rsrs) para algumas telespectadoras. Pois, parece ser esta a intenção da roteirista e diretora (Maggie Gyllenhaal) ao enfatizar certa dependência desta filha em relação a sua mãe: a ansiedade da criança em chamar a mãe para brincar, não deixar que ela durma na cadeira de praia e, em muitos momentos, tapa a boca da mãe e tenta impedir que ela fale com as pessoas em seu entorno, na cena filmada em uma loja de brinquedos. É esta visada da relação quase simbiótica no laço afetivo entre  mãe-filha que produz em Leda recordações sobre as relações  de amor e ódio que ela estabeleceu com suas duas filhas adultas, uma com 23 anos e a outra com 25 anos. Nestas lembranças, Leda aparece também aos vinte e poucos anos (interpretada pela cantora e atriz Jessie Buckley) tentando contrabalançar esforços entre sua carreira de professora universitária e os cuidados com as duas filhas e o marido (Jack Farthing). Este mais parece ocupar o lugar de filho e não de companheiro que seria aquele que compartilha de modo horizontal as tarefas domésticas e projetos de vida comuns com a esposa. É disso que se trata o filme, é um retrato de uma sociedade patriarcal que ainda coloca sobre a responsabilidade da mãe o cuidado com as filhas, há cenas de desespero de Leda ao tentar se equilibrar entre vida privada e vida profissional, ao lado, de um marido “desconstruído” em seu machismo. Ou seja, aparentemente ele ajuda nos cuidados com a casa e as filhas, mas sempre prioriza suas atividades profissionais em detrimento das da esposa. Esta característica da cultura patriarcal produz sofrimentos nas mulheres e são nefastas para as relações mãe-filhas, e o roteiro da película é exemplar em explicitar este processo de exploração sexual/social presente em sociedades sexistas. Daí a necessidade de problematizar o fato de que tanto mães quanto suas filhas foram criadas, praticamente, com apenas um tipo de brinquedo, que são as bonecas, que já trazem a mensagem implícita de que o destino delas é o de sempre cuidar, alimentar, acalentar e etc. Sim, são habilidades importantíssimas para uma vida em sociedade mais humana, mas o problema é que elas estão associadas às mulheres e são pouco valorizadas como capacidade também dos homens. O roubo da boneca por Leda, parece trazer à tona o fato de que ainda precisamos cuidar das bonecas na busca por recuperar uma relação mãe-filha idealizada em nossas ancestralidades. Cabe destacar que o brinquedo, muitas vezes, lembra filmes de terror, porque hora desaparece da vista da protagonista, hora a boneca é invisibilizada pelo caseiro que faz uma visita inesperada; e hora se aproxima de uma morta-viva que vomita nas roupas de Leda e expele bichos nojentos após ser dispensada na lata de lixo e recuperada no desenrolar da história.

Portanto, há algo em jogo nesta relação entre mãe e filha que a produção cinematográfica aqui em foco coloca em questão. O roteiro desconstrói o mito do amor materno (Badinter, 1985) e coloca em cena uma mulher que tem outros interesses além de garantir a felicidade e a boa formação de suas filhas. A protagonista é inteligente, reconhecida por seus pares em sua área de atuação e pesquisa e é dona de seu próprio sustento. Há desejos em Leda por outros homens (o que coloca em cheque a monogamia impingida apenas às mulheres na contemporaneidade e para garantir a perpetuação da propriedade privada entre as famílias) e pelo conhecimento, a paixão pelo saber caracterizada pelos livros e cadernos com diversas anotações sempre ao seu lado. Ou seja, Leda é uma mulher ambiciosa no que se refere à sua carreira profissional e livre também dos padrões de beleza e cirurgias estéticas, pois não há uma figuração sequer da protagonista em salão de beleza ou com maquiagem, ela é caracterizada como uma mulher comum preocupada em ouvir sua música preferida enquanto dirige o seu carro. Ela parece ter criado as suas filhas para viverem de modo independente dela e também para procurarem um jeito singular de serem felizes. Esta ideia pode ser desprendida em cenas nas quais a nossa protagonista conversa com suas filhas ao telefone, em um primeiro momento uma de suas progenitoras não tem tempo para continuar a interlocução com a mãe e despede-se de forma abrupta sem tempo para saber como foi a viagem até o local paradisíaco. Na segunda cena, há risos do outro lado da linha e Leda conversa simultaneamente com as duas filhas ao telefone e as três  estão felizes e vivas. Ao que tudo indica, apesar das intempéries e das relações afetivas ambivalentes, há a construção de uma personagem que conseguiu oferecer uma formação para suas meninas na qual a sororidade foi possível na relação entre as irmãs. Porém, o filme parece nos convidar para refletir sobre o que se transmite de ideias e ideais nas relações mães-filhas e quais as possibilidades de garantir liberdade e felicidade para todas as mulheres de modo a desconstruir modelos de dominação também incorporados por elas. Assim como afirma bell hooks (2019, p.58-60):

“Claramente, a diferenciação entre forte e fraco, poderoso e impotente, tem sido um aspecto central definidor de gênero no mundo, carregando consigo o pressuposto de que homens deveriam ter maior autoridade e dominar mulheres. Tão significativo e importante como esse fato é que não se deveria encobrir a realidade de que mulheres podem participar – e realmente participam – das políticas de dominação, tanto como perpetradoras quanto como vítimas: dominamos, somos dominadas. (…) É preciso lembrar, enquanto pensamos criticamente sobre dominação, que nós todos temos a capacidade de agir de maneiras que oprimem, dominam, machucam (seja esse poder institucionalizado ou não). É preciso lembrar que, primeiro, precisamos enfrentar o opressor em potencial dentro de nós – precisamos resgatar a vítima em potencial dentro de nós. Caso contrário, não podemos ter esperança de liberdade e ver o fim da dominação”.

Vemos no filme uma intersecção entre três momentos (e não apenas dois) da vida da protagonista, representados na figura de uma boneca. Dois desses momentos são os que vemos no filme, o presente, numa praia grega e o passado de sua juventude, já casada, mãe de duas filhas e envolvida em seus estudos acadêmicos. Um terceiro momento é hipotético e nos levará a algumas conjecturas sobre quando a protagonista foi apenas a filha. Em um primeiro momento, Leda é retratada em sua juventude e, mesmo mãe de duas meninas, ainda mantinha consigo a boneca que lhe havia sido dada por sua mãe. A boneca, até então, permanecia intacta, bem cuidada. Cuidado este que vemos ser reproduzido, em um segundo momento,  quando a protagonista já aos seus quarenta e sete anos de idade, se apropria da boneca de uma menina que está na praia e na companhia de sua mãe, ignorando o impacto que essa apropriação produz nesta criança e todo o movimento, tão barulhento quanto a chegada daquele grupo familiar à praia, para que esta boneca seja encontrada. Sobre esse ponto, há um certo incômodo ao acompanhar todo o cuidado e zelo da protagonista direcionado à boneca, a despeito do sofrimento observado ao seu redor. Se ela era apanhada por constantes interrupções de seus momentos de busca de tranquilidade, seja pela chegada da ruidosa família à praia onde ela apreciava, até então, o silêncio e um momento dedicado a si, seja pelo grupo de rapazes que perturbam uma sessão de cinema, poderíamos pensar que manter a boneca consigo, sem levar em conta as ruidosas buscas por esse objeto, seria uma espécie de vingança. Entretanto, há algo além nessa relação estabelecida entre a personagem principal e a boneca, que as autoras deste texto puderam resgatar por meio de algumas pistas oferecidas por sua  história pregressa, que indicam outras possibilidades e hipóteses. 

A boneca mantida em sua juventude, como vemos em uma das cenas, é oferecida a uma de suas filhas, acompanhada da mensagem de que este era seu brinquedo quando ela mesma era criança e rogava que a filha, por sua vez, cuidasse muito bem do objeto (como ela mesma havia feito). O filme não nos oferece dados, mas podemos conjecturar algo sobre esse cuidado zeloso com o brinquedo. A Leda-criança tinha uma boneca, dada por sua mãe, que talvez tenha também lhe pedido que cuidasse bem do objeto. Ela o fazia simplesmente por reproduzir o cuidado que pôde receber talvez, ou teria havido alguma rigidez no pedido da mãe? O que vemos é uma reação de extrema raiva quando encontra a boneca riscada por caneta pela pequena filha. Há que se destacar dois pontos aqui, um deles é que a protagonista se depara com uma boneca que já não é mais dela, por não ser do jeito que ela a desejava (assim como uma praia, que parecia ser só dela, e abruptamente, deixa de ser), quase como se aquele aparente vandalismo infantil lhe tivesse roubado a boneca que ela mantinha tão perfeita. O outro é o fato de que ela depara-se com seu próprio fracasso, ao não conseguir transmitir para a filha a importância do cuidado, como ela, enquanto boa filha, o havia feito antes. Em muitas cenas, ela parece sofrer por não poder cuidar de suas próprias filhas, como havia conseguido fazer com a boneca. Furiosa, termina a destruição da boneca, atirando-a pela janela. Ou tudo, ou nada. Se a filha não pode ser uma boa menina, não será merecedora desse precioso objeto. E se a filha não é uma boa menina, nesta lógica, Leda toma o fato como o seu próprio fracasso. Não há mais boneca para cuidar, enquanto o cuidar das filhas lhe limitava a possibilidade de se atentar para  outras coisas às quais gostaria de se dedicar. Se a escolha do brinquedo e a forma de manipulá-lo se aproximam, como nos diz Melanie Klein (1980), dos processos inconscientes de formação dos sonhos, é preciso pensar nessa mulher-mãe como um sujeito desejante e que não tinha estruturas para tolerar o impedimento da realização de seus projetos de vida, tal qual somos frustrados a sermos acordados no meio de um sonho bom. Seus estudos em literatura e língua italiana eram seu novo brinquedo. E ela precisava fazer algo para que aquele objeto também não lhe fosse destruído. O faz, deixando, por um período de três anos, as filhas aos cuidados de seu marido e de sua mãe e indo cuidar de uma oportunidade em sua carreira. Mas como isso se liga com o furto da boneca em seu presente? 

Há embaralhamento das cenas entre as épocas da juventude e da vida adulta da protagonista. Há repetição presente na vida de Leda, entre o choro não atendido da filha pedindo um beijo no dedo ferido em sua juventude  e  o desespero da criança desconhecida para recuperar sua boneca. Parece que estes momentos não mobilizam a nossa protagonista, ao menos em forma de ação. No primeiro momento, ela está ciente do sofrimento que lhe é apresentado, mas seguir com seu plano de busca de realização profissional também é importante. A irritação com o brincar das filhas enquanto ela quer se dedicar ao seu projeto acadêmico volta a aparecer no rompimento do silêncio na praia ou na sala de cinema. Ela não suporta, parece agir como se ela nunca pudesse se relacionar com o melhor ao seu redor. Assim, roubar uma boneca, enquanto ser inanimado, enquanto objeto, não lhe exige nada além do que ela quer imaginar naquela relação. Com a boneca, Leda pode fazer o que quiser, sem irrupções que ela não seja capaz de controlar. A boneca é dela, a boneca é ela. Ela pode sonhar. A boneca furtada é uma tentativa de recuperar a possibilidade de cuidado, de mergulhar em seus sonhos sem ser interrompida. De voltar a ser a filha ideal. A filha perdida, o tempo todo, é ela. 

Mas, seria possível pensar que também se trata de uma mãe perdida? Uma mulher diante de uma maternidade que lhe é exigida a todo tempo e que, aos olhos dos outros, sempre está errada. Se não tem filhos, é questionada pelos motivos de não tê-los; se gera apenas um, é pressionada a ter mais um para não causar prejuízos ao filho único; se tem dois filhos, precisa dar conta deles e ainda seguir a vida trabalhando; se tem três ou mais filhos, é criticada por ter tido muitos. Há sempre uma exigência para que a mulher exerça a maternidade de uma forma suficientemente boa, que seja cuidadosa e atenta a todas as demandas, sem deixar os filhos esperando muito tempo para não causar desespero e desamparo. Entre tantas exigências e demandas, é preciso deixar de lado a carreira, a feminilidade e a própria liberdade. A sexualidade fica restrita à procriação, sendo a menopausa o fim desta carreira. E se a escolha é não abandonar seus desejos e projetos pessoais em prol da maternidade, é considerada uma mãe insuficientemente boa. Nada disso é cobrado da figura paterna, ao contrário, quando cumpre com a função de cuidar dos filhos, é supervalorizado e considerado um pai ativo e presente, recebendo até agradecimentos pelos bons serviços prestados.

Em uma sociedade patriarcal, as mulheres deixam de ser valorizadas por todos os outros atrativos que podem ter ao se tornarem mães: seu corpo, seu intelecto, seu entusiasmo, sua vontade e outras capacidades variadas que podem ter em distintas etapas da vida, para serem exclusivamente qualificadas pela capacidade reprodutiva e pelo exercício da maternidade. São as diversas situações de marginalização da figura feminina que levaram as mulheres a produzirem rebeliões feministas visando modificar os condicionamentos culturais que as colocam como objetos a serviço das imposições do patriarcado (CORIA, 2012).

Uma dessas rebeliões pode ser observada no filme quando a jovem mãe decide deixar o marido e as filhas para viver aquilo que o casamento e a maternidade não lhe permitiram: a busca de si mesma e dos seus desejos. Sua atitude não pode ser considerada “abandono” e muito menos “egoísmo”, mas uma forma de resistência aos padrões que são colocados à ela. Trata-se de uma forma de transgredir a moral imperante, escapar do encarceramento que a torna prisioneira solitária de uma função que exige que somente ela a cumpra sem a ajuda de coletivos e instituições, sem a partilha das ações de cuidado com o seu marido. Muitos são os riscos e os desafios colocados às mulheres que conseguiram construir subjetivamente um grau de independência interno que lhes permitiram não sucumbir aos padrões repressivos impostos por uma cultura patriarcal e moralista, aceitando viver aventuras para além daquelas permitidas a seu gênero.  

Em um contexto relativamente tradicional, é inaceitável que uma mulher possa desejar não ter a experiência da maternidade; ou que, desejando tê-la, sente-se estigmatizada quando não consegue engravidar; ou ainda, que quando engravida fora de uma relação matrimonial, é vista como descuidada, inexperiente, ou pior, puta, simplesmente por terem seguido o desejo sexual. Desnaturalizadas, inférteis ou putas são alguns dos inúmeros exemplos de qualificação de mulheres condicionadas e responsabilizadas pela construção de uma família harmoniosa e feliz. E se não sabe como fazê-la, seguindo os mandatos sociais carregados de incertezas e desconhecimentos, são consideradas fracassadas e incapazes de sustentarem a si mesmas (CORIA, 2012).

A boneca representa, neste sentido, o objeto transicional (Winnicott, 1975) que restabelece a relação mãe-filha em outros patamares. A boneca não chora, não exige peito e colo a qualquer hora, não interrompe os sonhos e os prazeres, não fica doente e necessita ser levada ao médico, obrigando a mãe a se ausentar do trabalho. Uma boneca não paralisa, momentaneamente, a carreira profissional, as viagens, os projetos, mas, também, não possibilita o inesperado, o desconhecido, a descoberta e a própria realização da maternidade. Por isso, o roubo da boneca carrega uma ambiguidade: há uma certa diversão nele, ao se apropriar de algo que não é seu para construir elos com seu passado, ativando memórias infantis de experiências com a boneca que ganhou de sua mãe e repassou à sua filha, com as brincadeiras com as filhas pequenas até à sua recusa em continuar a desempenhar o papel de mãe em determinado momento de sua vida; por outro lado, há uma certa crueldade nesse roubo, um ato perverso e malicioso em se apoderar da boneca enquanto assistia e oferecia ajuda à mãe da menina que sofria por sua perda. 

Não seria essa crueldade outra forma de transgressão aos lugares adequados e suficientemente bons esperados de todas as mulheres – conceber filhos, se tornar o pilar da família, desenvolver a carreira profissional, ter projetos sociais e assumir compromissos éticos e políticos que garantam um futuro bom para a toda humanidade? Algumas mulheres sentem ter cumprido esse mandato social de forma exitosa e se percebem satisfeitas como mães e esposas; outras se esforçam por justificar e perdoar-se por o terem cumprido mais ou menos; e outras que, segundo os códigos sociais, são consideradas merecedoras de exclusão de toda consideração social por terem transgredido a todos os mandatos. Apesar dos esforços para construir um mundo que seja bom para todos, a mulher se vê diante de uma vida que oferece, a todo tempo, situações, experiências e alternativas aos padrões que têm sido adotados e respeitados durante muito tempo (CORIA, 2012). São vivências que se apresentam como possibilidades de transitar pela vida sem recorrer a certezas, ou ainda, são possibilidades de converter as incertezas cotidianas em aventuras que a façam escapar dos horizontes já desenhados para ela.

Portanto, o roubo de um brinquedo ou de uma boneca pode dizer de nossos desejos mais recônditos, seja o de um cineminha como objeto inusitado que marca uma paixão de vida toda pela sétima arte, seja o roubo de uma boneca, que no filme aqui em foco, fala da crueldade e do desejo de dominação que não é amainado nem com o fato de uma  mulher adulta estar diante do sofrimento de uma criança desesperada por recuperar seu objeto de afeto perdido. A nós mulheres cabe travarmos a luta que vale a pena, como nos indica bell hooks, contra a dominação masculina que reproduzimos silenciosamente por meio de uma educação pautada na oposição entre fortes/fracos, que premia as boas e castiga as más ações, sempre desacompanhadas de orientações afetuosas e racionais. Trata-se de um modelo de educação calcada em binarismos que  incorporamos há séculos em nosso processo de socialização na instituição familiar, no sistema educacional e no mercado de trabalho. A despeito disso, seria necessário a construção de um modo de educar pautado nos debates sobre as condições para a desestruturação de modelos pré-estabelecidos na direção da inusitada elevação das condições para a  amorosidade. Como nos alerta a escritora feminista negra,  em outro de seus livros: “O amor é uma ação, nunca simplesmente um sentimento” (hooks, 2021). Talvez uma forma sutil de enfrentar o opressor dentro de nós seja a de inventar outros brinquedos e outras brincadeiras – para os meninos, as meninas e as crianças transgêneras – que não venham marcadas pelos atributos de gênero. Trata-se de disponibilizar mais tinta, lápis, papéis coloridos para inventarmos junto com nossas crianças (as internalizadas e as que estão sob nossos cuidados) um mundo sem binarismos entre bom/ mal, dominadores/ dominados, cuidadores/empreendedores, opressores/oprimidos. Que sejamos capazes de forjar cineminhas nos quais a vida possa passar a transvaloração dos valores vinculados à dominação de modo a transformá-los em esperança de liberdade entre os sexos.

Referências bibliográficas

Badinter, Elizabeth. O mito do amor materno. Nova Fronteira, 1985.

Coria, Clara. Erotismo, mujeres y sexualidad – después de los sesenta. Barcelona: Pensódromo, 2012.

Freud, Sigmund. Psicopatologia da vida cotidiana. São Paulo: Companhia das Letras, 1901.

hooks, bell. erguer a voz – pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019.

hooks, bell. tudo sobre o amor – novas perspectivas. São Paulo: Elefante, 2021.

Klein, M.(1980). A técnica analítica através do brinquedo: sua história e significado. In M. Klein (Org.), Novas tendências na psicanálise (2a. ed.). Rio de Janeiro: Guanabara.  

Winnicott, D. W. Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In D. Winnicott, O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago,1975.

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