Por Ana Lucia Gondim Bastos e Jaquelina Imbrizi
Como las madres (hoje abuelas) da Praça de Maio que tiveram seus filhos mortos e desaparecidos, durante o regime militar que vigorou na Argentina de 1976 a 1983, clamam por um não apagamento da história de seus filhos, de seus corpos e de suas lutas políticas, são las madres e abuelas de Almodóvar, em seus diversos filmes sobre o tema. “A história humana se recusa a ficar calada” diz Galeano em passagem citada pelo diretor em seu último filme Madres Paralelas (2022). Nele, talvez mais do que em qualquer outro, Almodóvar mostra como esse processo das histórias buscarem a luz, se produz em um movimento que vai do coletivo para o singular e vice-versa. Histórias editadas, cheias de apagamento e desejos rechaçados, tornam-se sintoma, já nos dizia Freud, em seus Estudos sobre a Histeria. Sintomas que constrangem movimentos, deformam corpos, impedem relações, embotam o pensamento e, portanto, promovem repetições. Em meio a muitos personagens masculinos (maridos, padrastos e pais) que reproduzem todo tipo de violência legitimada pelo patriarcado, mulheres (cis, trans, novas, velhas, ricas, pobres, casadas, solteiras com ou sem filhos) vão tecendo teias de relações e afeto que dão suporte para se pensar em novas formas de solidariedade e encontro humano. Ameaçam o modelo de família vitoriana burguesa e apresentam as cores vivas do que pode ser um mundo fora do registro falocêntrico. “Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo”, nada em tons pastéis porque a vida é pulsante e rara, nos takes que aproximam a câmera dos seios, bocas e mãos das personagens que nos contam acerca das mulheridades em múltiplas camadas. Muitas pagam preço alto, por terem desejado sair do modelo de mãe e esposa fiel, outras, justamente, pelo contrário, por terem se submetido resignadamente. Mas, em seus roteiros, elas se encontram, e El Deseo é o que produz a trama. E quando isso acontece a radical contingencialidade do objeto da pulsão, discutida por Freud em 1905, se explicita e, o que pode parecer tão moderno, se mostra tão antigo quanto a própria humanidade que busca naturalizar organizadores de narrativas que são, na verdade definidos sócio historicamente em função de relações de poder.
Quem são as Madres retratadas na última película almodovariana? Duas mães solteiras, uma delas é uma mulher que beira os quarenta anos, Janis (vivida por Penélope Cruz) e não deixa escapar as últimas chances da maternidade fruto de um encontro com seu amante e Ana (interpretada por Milena Smit) uma jovem, recém saída da adolescência, que engravida após se relacionar com vários homens que estavam na casa de um de seus amigos, num contexto de abuso sexual. As duas se encontram na maternidade e durante o parto são acompanhadas também por mulheres: a mãe da mais jovem, a amiga-chefe da mais velha, interpretada pela icônica Rossy Palma, que dá vida à personagem Elena. Agora a protagonista de Almodóvar é uma mulher moderna, autônoma financeiramente, fotógrafa profissional, mora sozinha e se aproxima dos 40 anos…e urge ser mãe após uma gravidez não planejada, mas, muito desejada. Ela decide ter a criança sem o apoio do amante.
Independentemente das circunstâncias do roteiro, cabe assinalar uma teia de mulheres que vão se cuidando e apoiando umas às outras na atenção necessária direcionada às bebês: amigas, avós, mães, empregadas domésticas e a universitária que exercita o papel de babá para conseguir se formar. Um dos pontos altos do filme se dá em um momento de brinde e de celebração a todas as mulheres de diferentes gerações que apoiaram e foram responsáveis pela formação de Janis. Vários nomes são citados de mulheres importantes em sua trajetória, entre eles o de Cecília que dá nome a bebê e é o mesmo da avó materna que criou a órfã Janis, cujo nome fora escolhido em homenagem à cantora Janis Joplin. A cada nome um brinde. Depois do brinde, as duas mulheres se envolvem sexualmente. A bissexualidade na busca de prazer da protagonista é apresentada sem alarde e com naturalidade na trama. Almodóvar parece estar em diálogo com feministas que criticam a heterossexualidade compulsória, como a poeta Adrienne Rich (Vyrgioti, 2020; Santos, 2020). Psicanalistas e feministas têm enfatizado que os estilos de vida das mulheres autônomas, independentes financeiramente, solteiras, as femmes seules, viúvas, as consideradas solteironas, e as lésbicas, ainda sofrem injúrias moduladas pelo escárnio e pela violação de direitos que podem chegar ao ato, ao feminicídio. Elas trazem como contrapondo a esta compulsoriedade a importância dos laços de sororidade nas experiências lésbicas que não se reduzem ao fato de que algumas mulheres tiveram ‘experiências genitais com outras mulheres’, mas consideram “muitas outras formas de intensidade primária entre mulheres, incluindo o compartilhamento de uma rica vida interior, a união contra a tirania masculina, o apoio prático e político” (RICH, 2003, p. 27) dado umas às outras (Santos, 2020, p. 198).
A despeito disso, fazendo o jantar para a sua companheira, Janis estampa em sua camiseta a frase: WE SHOULD ALL BE FEMINISTS. Sentença que se refere ao títula da conferência da escritora nigeriana e feminista Chimamanda Ngozi Adichie que em formato de vídeo já tinha atingido 7.378.938 visualizações no ano de 2013. Nesta cena e cenário é fato comprovado: Almodóvar está atento aos desafios do nosso tempo histórico. Que bom!
Na história de Janis, as mães solteiras também estão associadas com a ditadura espanhola, que assassinou muitos homens em guerra. Este passado é revivido em busca dos restos mortais das pessoas que lutaram pela democracia ou por um país mais justo. Viúvas de homens que foram assassinados pela ditadura e porque eles não fugiram? Talvez por medo de deixar a família, os filhos e as filhas. Já Janis, além de carregar este duro fardo de ter parentes desaparecidos, é filha de uma hippie, que assim como Janis Joplin, morreu de overdose. Portanto, ela foi criada pela avó a partir dos seus cinco anos de idade e sem a presença da figura paterna. Janis nos informa que é herdeira transgeracional de mães solteiras, a avó e a sua própria mãe criaram sozinhas as suas filhas.
Um filme que explicita a bissexualidade de sua protagonista não é novidade para Almodóvar, a novidade talvez seja o fato de que no final feliz nuançado no desfecho da película é a heteronormatividade que vence. Uma decepção! (risos). Mas, não sem polêmicas, pois há alusão ainda à importância das redes afetivas entre mulheres que continuam juntas e se cuidando: Elena é a chefe apaixonada por sua profissional de fotografia, Ana e Janis se consideram mães de uma criança sortuda que pode usufruir dos cuidados de várias mulheres exercendo amorosidade em sua direção, exercitando a maternagem. Aqui, trata-se das mulheridades, pois Almodóvar não nos cansa de apresentar suas travestis como modelos profissionais e capas de revistas importantes, sendo fotografadas em sua exuberância, força vital e beleza.
A questão da sexualidade sempre foi polêmica e política nos filmes de Almodóvar, seja a caricatura da histeria na película “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, seja no maravilhoso filme intitulado “Tudo Sobre Minha Mãe” que coloca o tema do luto e da autenticidade das mulheres transsexuais e travestis em protagonismo. O discurso de Agrado (interpretada por Antonia San Juan) ainda ressoa na cabeça de cada uma de nós, explicitando como é caro ser autêntica, pois é necessário investir muito dinheiro na aplicação de silicone, botox e implantes em todo o corpo para que essas mulheres sejam reconhecidas e respeitadas em sua autenticidade. Nesse filme, as mulheridades já não são retratadas como recalcadas, mas acorrentadas e ainda escravas dos padrões estéticos e critérios de beleza idealizados pelos meios de comunicação de massa.

Em português não existe uma palavra para exprimir a experiência de uma mãe que perdeu seu filho; temos o viúvo e a viúva que perderam seus companheiros e companheiras, temos os órfãos que disseram adeus aos seus pais. Talvez, seja o processo de acolhimento diante do luto que ainda não tem nome e do terror que é a consciência momentânea de nos sabermos finitas que nos faça ficarmos unidas, construindo outros laços e implodindo com o modelo de família nuclear burguesa. Não importa quem é a mãe biológica ou quem é o pai biológico, o que interessa é que há uma criança que tem urgência de amor e de ser amada, num momento em que as satisfações das necessidades básicas são indissociáveis do erotismo expresso nos processos de cuidado com alimentação e higiene.
Almodóvar aqui traz à tona a história da ditadura espanhola, como o fez no filme “Carne Trêmula”, no qual há a cena de um parto dentro de um ônibus em circulação no espaço público, como alegoria a uma possível abertura política em seu país. Ele conta as suas histórias e une política e sexualidade com maestria. Agora, em Madres Paralelas, ele expõe o (o)caso das mães vivendo com outras mães, mulheres que se apóiam num movimento estético que se alternam entre o verde e vermelho; entre papas assadas e “tomates fritos”, revelando uma comensalidade típica das terras espanholas. As protagonistas retratadas estão acompanhadas de um bom vinho em taças que brindam um devir das mulheridades dispostas a uma guerra sem armas e canhões, a uma luta fraterna contra o patriarcado e a sociedade sexista. Escavar o passado, deixar vir à tona nossos entes queridos assassinados, recuperar seus legados, elaborá-los, levantar-se e seguir em frente com sensibilidade para criar novas formas de relação entre pessoas, eis aí um desafio e tanto para o nosso devir mulher configurado no filme de Almodóvar. Uma ode aos laços fraternais, às sororidades, às maternagens possíveis e compartilhadas!
Fica a dica: WE SHOULD ALL BE FEMINISTS!
Referências bibliográficas:
Adichie, Chimamanda Ngozi. We should all be feminists. https://www.youtube.com/watch?v=hg3umXU_qWc
Birman, Joel. Insuficientes, um esforço a mais para sermos irmãos. In Kehl, M. R. (Orgs).Função Fraterna.Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2000.
Santos, B. (2020). Imposições sexuais e diferenças entre os sexos: bruxas, femmes seules, solteironas e S. Freud. In Parente, A. M. & Silveira, L. (Orgs.), Freud e o Patriarcado (pp. 197-204). São Paulo: Editora Hedra.
Vyrgioti, M. (2020). Bêtes noirs: as mulheres queer da psicanálise. In Parente, A. M. & Silveira, L. (Orgs.), Freud e o Patriarcado (pp. 72-86). São Paulo: Editora Hedra.O discurso da personagem Agrado no filme Tudo Sobre Minha Mãe: https://www.youtube.com/watch?v=6E7GGm1IwZY
