Por Ana Lucia Gondim Bastos
O novo filme do sul-coreano Park Chan-wook, “Decisão de Partir” (2023), conta a que veio e intriga desde antes de entrarmos na sala de cinema. O cartaz do filme traz a ambivalência entre o título do longa metragem e a fotografia de um casal que, algemado um ao outro, parece ser conduzido, num banco traseiro de carro, de forma resignada. Ele de olhos fechados e ela a olhar pela janela. Aí a gente já se pergunta de que decisão, ou possibilidade de decisão, estaremos tratando? Quem algemado ao outro pode decidir sobre alguma coisa? Enfim, acabamos por decidir não partir e pagar para ver o que esse brilhante diretor, já muito conhecido pelos inquietantes “Old Boy – desejo de vingança”(2003) e “A Criada”(2016), teria a dizer sobre partidas escolhidas. Diferente desses outros dois roteiros, “Decisão de Partir”mistura gêneros numa atmosfera noir, e nos envolve numa narrativa que borra os contornos de qualquer linearidade, seja nas investigações dos casos de homicídios nas quais o detetive protagonista, Hae Joon (Park Hae-il), se envolve; seja na relação que estabelece com elas ou com os envolvidos nos enigmas que comportam. Assim, o que é história contada, vivida ou sonhada se mistura, também como o mistério, o romance ou o suspense que se alternam e nos confundem, tanto quanto nos prendem e nos encantam. Hae-Joon fala de como costuma encontrar as vítimas mortas de olhos abertos e de seu anseio em desvendar quem teria sido a última pessoa que aqueles olhos enxergaram. Um desses cadáveres fora de um homem muito rico, experiente alpinista, cuja queda durante uma escalada, levanta suspeitas que levam Hae Joon a ser convocado acerca da possibilidade de ter sido um homicídio. A principal suspeita do crime é a jovem viúva chinesa, que mal fala coreano e carrega consigo uma história de vida cheia de mistérios que arrebatam o detetive que, por ela, acaba se apaixonando. Hae Joon se apaixona por ela e por seus muito enigmas e passa a atrapalhar-se em meio a uma enxurrada de sentimentos e informações contraditórias.
É nesse enredo que o título do filme começa a se emaranhar e a nos contar sobre algo que pode parecer óbvio, mas, que nem sempre nos damos conta: sobre as (im) possibilidades de decisões de partir que alinhavam toda existência humana. As situações de imigração ilegal, eutanásia, suicídio, homicídio, paixão, casamento, prisão, investigação, insônia, mudanças geográficas e todas as outras presentes no roteiro, de repente, parecem saltar aos olhos como relacionadas ao título do filme. Estamos sempre diante da decisão de partir (ou não). Estamos sempre diante da possibilidade de partir (ou não). E quando enigmas nos são colocados para que cheguemos a essa conclusão, aparentemente tão óbvia? Quando estamos diante do estrangeiro que nos obriga a procurar palavras e sentidos que possibilite o encontro com o outro, aquele que acaba por nos levar ao enfrentamento do estrangeiro que existe em nós mesmos. Quando estamos tão encantados com o outro que somos capazes de nos misturar e nos confundir, a ponto de prescindir da cabine de controle da vida, ou de percebermos que ela nunca existiu. Quando podemos viver uma vida de incertezas acerca das decisões, ainda que não desistindo delas. Ou quando somos capazes de notar que não podemos desistir delas até que a vida termine, por vezes pela própria decisão de partir. Mais uma vez, Park Chan-wook nos faz sair da sala escura com o filme reverberando por muito tempo, tomando conta de quem topou o mergulho e decidiu ficar.
