Crônica – Strawberry Strings ou o poder de desejar os morangos

Por Ana Lucia Gondim Bastos

A vida humana comporta um incansável processo de ressignificações, ou ampliação da possibilidade de significações, de palavras, experiências, lembranças, imagens, sons e emoções. Cada momento de vida, cada contexto histórico cultural pelo qual passamos, cada pessoa que entra na nossa narrativa de vida, cada obra de arte que nos sensibiliza ou cada surpresa do acaso, tem potencial transformador do nosso repertório de significações. E assim, que vão se estabelecendo tramas e urdiduras que tecem o sentido da vida, que nos ajudam a estabelecer critérios de escolha dos caminhos que vamos/queremos trilhar ou de quem irá nos acompanhar ou ser, nesses caminhos.

Há anos atrás, enquanto eu me encontrava distraída, ocupada com afazeres referentes a escolhas até que bem consolidadas, recebi um telefonema que anunciava um encontro, o qual viria a ter uma potência transformadora que, naquele momento, não poderia sequer supor. Cecília era uma menininha de 5 anos que viera fazer um tratamento de saúde, em São Paulo. Tivemos um ano e meio de muita convivência. Ela gostava muito de cantar, dançar, conversar, se enfeitar, também gostava de fantasias, joaninhas, pastel de queijo e linguiça. Estava sempre pronta para “dar uma voltinha” por aí, para aproveitar essas coisas boas da vida, a despeito do cansaço proveniente dos efeitos colaterais do tratamento intensivo. Como na música de Caetano, quando Cecília estava por perto, parecia que uma força estranha estava no ar e nos dava a convicção que parar não era uma opção. Cecília era um pulsar de vida, de esperança e de alegria, mesmo nos momentos nos quais as internações em hospitais eram inevitáveis, mesmo quando a doença, e seu tratamento, impunham limitações à vida cotidiana ou mesmo quando seu corpinho ficou bem debilitado. Cecilia sempre tinha planos para o amanhã, sempre tinha coisas a fazer, a conhecer ou a experimentar. Num dia das crianças, que depois viríamos a saber que seria seu último dia das crianças, fui visitar Cecília, que chegara em casa depois de mais uma temporada no hospital. Ela já estava com movimentos bem restritos e uma fraqueza evidente. Cheguei pertinho dela e perguntei como estava, ao que me respondeu me olhando de rabo de olho: – Sabe no que não consigo parar de pensar? Naquele morango de cima do bolo que não vão querer me dar porque passei mal, hoje.

Claro que o morango foi dado à Cecília que, ainda que com dificuldade, comeu com satisfação e prazer.

Por conta dessa história, antes de voltarem à terra natal, os pais e irmãs de Cecília, me deixaram como herança um quadrinho pintado por ela que parecia ter, ali representado, um zoom de morango. Um quadrinho que, lá em casa, guarda a memória dessa história e dessa relação, um objeto com significado que poucas pessoas compartilhavam, até hoje, e de valor imenso na minha história.

Anos depois, novamente estando eu distraída com afazeres cotidianos, recebi uma encomenda. Sabia vir da família de Cecília, que continua muito presente na minha vida. Pelo formato, imaginei ser uma obra do avô de Cecília, que é artista plástico. A mãe dela, antes de ir embora, me prometera mandar, um dia, algo de seu pai, para compor meu consultório. Fiquei feliz com a lembrança, tempos depois da promessa, que eu imaginava ser um presente como outro qualquer. Abri reconhecendo o carinho que vinha junto com aquela encomenda, mas sem me dar conta do valor que aquele embrulho poderia conter. A data de realização do desenho vinha junto à assinatura na obra, 1983. Naquela época, pensei, a mãe de Cecília ainda era menina, estava bem longe de ser mãe. Quando olhei no verso da pintura, o título foi-me revelado: “Será? Ou Strawberry Strings”. Mais um morango me foi oferecido por essa família com a qual vivi, o divino maravilhoso, como noutra letra de Caetano: “Atenção ao dobrar uma esquina/ uma alegria, atenção menina

Você vem, quantos anos você tem?

Atenção, precisa ter olhos firmes

Pra esse sol, para essa escuridão

Atenção tudo é perigoso

Tudo é divino maravilhoso

Atenção para o refrão:

É preciso estar atento e forte

Não temos tempo de temer a morte…”

É preciso estar atento e forte e, para isso, não podemos perder de vista os morangos e não podemos, nunca, deixar de deseja-los.

Curiosamente, na minha coleção, o segundo quadro da série Morangos foi pintado mais de 30 anos antes do primeiro! O tempo da memória, das significações e ressignificações, funciona assim!

morangos2012

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