Por Ana Lucia Gondim Bastos
A monarquia francesa, do século XVII, tinha como expoente máximo, ninguém menos do que, LuÍs XIV, o rei Sol. Tal título se dava não só pela importância central do astro Rei para a vida no planeta, mas, também, pelo seu caráter de ordem e regularidade. Os ideias de beleza, limpeza e ordem que servem como uma espécie de verniz civilizatório, supostamente capaz de conter os impulsos humanos mais primitivos e ameaçadores à civilização, talvez não possam encontrar tradução melhor do que no tempo do monarca responsável pela construção do monumental Palácio de Versalhes. Os 700 hectares de jardim do Palácio foram cuidadosamente projetados, contendo veredas que formam desenhos precisos e harmoniosos, evidentemente traçados por mãos humanas. Era essa a visão que Rei Sol queria ter de qualquer uma das mais de mil janelas do Palácio: a visão de uma natureza claramente, e cuidadosamente, controlada por mãos humanas. Nada de muito espontâneo ou singelo teve lugar naquele tempo e naqueles espaços regidos pelo monarca. As roupas, perucas, maquiagens, que marcaram sua época, contam tanto desse apreço pela imponência e artificialidade, quanto qualquer projeto arquitetônico ou de decoração.
Em “Um Pouco de Caos” (2015), Alan Rickman (o, agora, para sempre, Professor Severus Snape de Harry Potter), assume a direção do filme e o papel do grande monarca francês, num enredo que se utiliza de todo esse cenário e valores, para falar do equilíbrio delicado entre impulsos pulsionais e exigências civilizatórias, que a condição humana comporta (como discute Freud, em o Mal estar na Civilização, 1930). Nos faz pensar em nossa existência como o cultivo de um jardim: sempre sujeito às intempéries e que, necessariamente, deve contar com o respeito às características de cada planta ali colocada – sempre variadas e diferentes em relação ao tanto que precisam de água ou de sombra, quanto tempo de florescer, etc. Sendo assim, se não suportarmos um pouco de caos, não temos como suportar esse cultivo constante que pressupõe se dar conta de que não se pode dar conta de tudo. De que tem coisa que é como é, cresce como cresce e fica do jeito que dá para ficar. E, o melhor é que, nem sempre oferece resultados indesejados, só por não terem sido planejados. São nesses termos, de liberdade e certo descontrole, que acontece o caso de amor entre os personagens centrais da trama, a paisagista Sabine de Barra (papel de Kate Winslet) e o paisagista chefe da corte Andre Le Notre (Matthias Schoenaerts). Ele a escolhe para projetar e executar uma das fontes dos jardins de Versalhes, justamente, por reconhecer valor no que percebe como uma certa desordem, em seus esboços. Desordem que vai favorecer encontros mais verdadeiros entre as pessoas (inclusive na corte), encontros nos quais os envolvidos vão poder falar sobre seus sentimentos, necessidades e desejos sem “perucas” ou “firulas”, contando suas histórias, com toda força dramática que carregam, assim como com a singeleza e delicadeza até então ofuscada por tanto brilho artificial.
Deu vontade de assistir. Maravilha, Ana Lúcia!
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