Por Ana Lucia Gondim Bastos
É uma arte contar uma história deixando bem evidente seu contexto histórico e social e sem fazer, portanto, com que o espectador saia da sala de cinema com a sensação de “tudo resolvido”, caso o protagonista se saia bem das situações propostas pelo roteiro. O tal “tudo resolvido” também pode vir num final “felizes para sempre”, que nos faz sair do cinema, deixando a história como terminada e limitada. Então, a arte de contar uma história envolvente que valorize o contexto no qual acontece, conta com personagens bem construídos, que serão aqueles que vão fazer parte do nosso repertório para sempre, quase como se os tivéssemos conhecidos, e com eles conversado, em algum momento de nossa própria história. Para um contorno tão bem estabelecido, para um personagem passar a existir desse jeito, tendo estado conosco apenas duas horas, há que se respeitar a indissociabilidade da tríade homem, sociedade e história, e isso, temos que admitir, o cinema francês faz, particularmente, muito bem! Samba (2014) é mais um filme que poderá ser citado como exemplo disso.
A dupla de diretores Olivier Nakache e Eric Toledano, mais uma vez, conta com o excelente Omar Sy para nos apresentar um personagem que, com certeza, será citado por gerações futuras. Omar Sy (que já foi Driss, o auxiliar de enfermagem de um milionário tetraplégico em “Intocáveis”, outro filme da dupla de diretores) é um senegalês, cujo nome dá título ao filme, que vive ilegalmente na França, há dez anos, trabalhando em pequenos serviços e sonhando em uma dia ter sua autorização de residência para, enfim, dar os passos necessários na direção de ser um chef de cozinha contratado, como já o é seu tio, único vínculo familiar na capital francesa. É com esse personagem que Nakache e Toletano, desta vez, nos aproxima da realidade de tantos imigrantes que lutam pela sobrevivência e pela possibilidade de regularizar seus documentos, fora de seus países de origem, para, então, viver dignamente suas histórias e suas construções identitárias. Sem essa possibilidade, vão se perdendo num labirinto de nomes falsos, histórias mal contadas e segredos sobre experiências, planos e sonhos. Do outro lado, existem pessoas que trabalham para dar apoio, inclusive legal, a essas pessoas de línguas, culturas e motivos diversos para estarem ali, tentando dar curso à narrativa de suas histórias. Numa ONG que reúne esse segundo grupo, Samba conhece Alice (Charlote Gainsbourg, em mais uma atuação impecável), uma executiva que, durante um afastamento médico das suas atividades profissionais, resolve trabalhar como voluntária atendendo imigrantes com problemas legais. Alice nos leva a pensar, e a viver com ela, outra questão de nosso tempo histórico e muito comum no cotidiano, principalmente, de quem vive nos grandes centros urbanos: a falta de limite para o trabalho, a pressão para bater metas, o profissional que tem que estar sempre se superando para dar mais e mais lucro para sua empresa e que também, muitas vezes, se perde nos labirintos das expectativas da empresa em relação a quem deveriam ser ou conseguir, nas frustrações de ideais e nos porquês de tudo isso.
Para finalizar, sem contar a história que merece ser assistida, o filme ainda traz uma trilha sonora deliciosa, surpreendente e alegre, e nos mostra que fio da esperança e da alegria, está nos bons encontros e na amizade que fazem a vida poder ser vivida com humor. Me fez lembrar, até porque durante todo o filme os personagens estão tentando encontrar lugares de pertencimento e casas que possam chamar de suas, de uma música de Capiba e Hermínio Bello de Carvalho que, por coincidência, me foi apresentada há pouco, na voz de Zelia Duncan: “Amigo é Casa”, para onde sempre podemos voltar, independente da língua que fale e do que determine fronteiras territoriais ou políticas.
Amigo é Casa
Amigo é feito casa que se faz aos poucos
e com paciência pra durar pra sempre
Mas é preciso ter muito tijolo e terra
preparar reboco, construir tramelas
Usar a sapiência de um João-de-barro
que constrói com arte a sua residência
há que o alicerce seja muito resistente
que às chuvas e aos ventos possa então a proteger
E há que fincar muito jequitibá
e vigas de jatobá
e adubar o jardim e plantar muita flor toiceiras de resedás
não falte um caramanchão pros tempos idos lembrar
que os cabelos brancos vão surgindo
Que nem mato na roceira
que mal dá pra capinar
e há que ver os pés de manacá
cheínhos de sabiás
sabendo que os rouxinóis vão trazer arrebóis
choro de imaginar!
pra festa da cumieira não faltem os violões!
muito milho ardendo na fogueira
e quentão farto em gengibre
aquecendo os corações
A casa é amizade construída aos poucos
e que a gente quer com beira e tribeira
Com gelosia feita de matéria rara
e altas platibandas, com portão bem largo
que é pra se entrar sorrindo
nas horas incertas
sem fazer alarde, sem causar transtorno
Amigo que é amigo quando quer estar presente
faz-se quase transparente sem deixar-se perceber
Amigo é pra ficar, se chegar, se achegar,
se abraçar, se beijar, se louvar, bendizer
Amigo a gente acolhe, recolhe e agasalha
e oferece lugar pra dormir e comer
Amigo que é amigo não puxa tapete
oferece pra gente o melhor que tem e o que nem tem
quando não tem, finge que tem,
faz o que pode e o seu coração reparte que nem pão.