Por Ana Lucia Gondim Bastos
Se a tarefa dada é a de se pensar num texto sobre relação mãe e filho, logo teremos uma infinidade de discursos trazendo a ideia de amores incondicionais, de felicidade extrema e duradoura, de perfeita sintonia entre duas pessoas, de laços afetivos capazes de sustentar existências e assim por diante. Muita beleza, alegria, satisfação, prazer e gratidão (de um lado e de outro). Tudo tão mágico e pleno que dá até um pouco de receio ousar querer passar por essa vida sem ter a experiência de ser mãe. A questão é que, se tem algo de duradouro nisso tudo, esse algo é a própria relação mãe e filho. E na vida real, podemos, sim, encontrar mulheres cuja dominância do registro afetivo, que se tem sobre a maternidade, é de satisfação, prazer e gratidão. Contudo, mesmo essas mulheres, saindo do momento “declaração de amor”, podem, via de regra, reconhecer as ambivalências nas relações com seus filhos. Poderão falar de momentos de tristeza, cansaço, dúvidas, incertezas e até desesperança. Mas, para elas, não é essa a tônica da relação, esses são momentos que fazem parte da vida e de todas as relações que temos nela e com ela. E, portanto, “se viram” bem com as adversidades e desafios impostos pela maternidade. Mas, como em tudo na vida, pessoas diferentes têm registros diferentes acerca das experiências vividas, até pelos contextos em que são vividas. E, sendo assim, é fácil concluir que nem todas as mulheres têm na maternidade histórias de encontros alegres e de transformações positivas. Muitas se sentem mais oprimidas que libertas, ao conhecerem o amor da dependência, da preocupação e da dedicação que farão parte do seu cotidiano a partir da chegada de seu bebê (ou até um pouco antes disso). Muitas mulheres sentem que as transformações, de todas as ordens, que acontecem quando se tornam mães, são, primordialmente, negativas e, é aí, que costuma começar histórias de tristes e perigosos desencontros. Todo bebê que chega no mundo precisa ser adotado. Precisa de alguém que por ele se responsabilize. Alguém empoderado da capacidade de favorecer seu desenvolvimento, com braços e olhos capazes de dar aconchego e confiança de que ele vai, sim, dar conta da vida e de que ela pode, sim, ser boa pra ele. Na nossa sociedade, esse alguém costuma ser uma mãe, ou melhor colocado, costuma-se cobrar de uma mãe que seja essa pessoa. Mas, às vezes, não dá para ela ser e, então, alguém precisa assumir (mesmo que, ou, por vezes, melhor ainda quando, junto com ela).
“Precisamos falar sobre Kevin”, filme de Lynne Ramsay (2011), baseado no livro de mesmo título de Lionel Shriver, traz à tona um assunto menos discutido do que frequente. Conta da relação de Eva com o filho Kevin, de Eva com o marido Franklin e de Eva com sua vizinhança, durante as várias fases da vida de Kevin. Eva (Tilda Swinton em brilhante atuação) é uma mulher que vai perdendo a alegria, a disposição, a assertividade e a crença no seu potencial de dar conta da vida, a partir do nascimento do filho. Kevin vai crescendo sem alguém que sinta que, realmente, dê conta dele, que acredite nele ou que tenha nele fonte de força e esperança. Franklin está presente, mas não entende, nem intervém na relação mãe e filho que vai ficando cada vez mais central na vida de ambos. Tudo o que Kevin faz é endereçado à mãe, que vai ficando cada vez mais apática, desesperançosa e capturada pelas atitudes do filho, o que só vai aumentando a dimensão da violência de tais atitudes do menino e, depois, rapaz (papel de Ezra Miller). Um ciclo vicioso que, sempre, pode terminar de forma trágica, com muita destruição e perda. E é o que acontece nessa história, como em tantas outras. Também como em tantas outras histórias, nessa, a vizinhança na qual Kevin cresceu, volta-se contra Eva. Como se a responsabilidade fosse dela, e só dela, por quem Kevin se tornou. Ela, por sua vez, assume tal responsabilidade e aceita passar uma vida solitária, submetida a todo tipo de humilhação, expiando a culpa que sente. Ao mesmo tempo, se oferece ao sacrifício, “dando a cara a tapa” para todos os que não podem, conseguem ou querem perceber o quanto Kevin é fruto de uma sociedade individualista e pouco solidária, da qual fazem parte. Diz um conhecido provérbio africano: “É preciso uma aldeia inteira para se educar uma criança” e a pergunta que fica é: E quando não temos uma aldeia com a qual contar? E quando somos sós, tentando dar conta das consequências de quem deveríamos ter sido, mas não deu para ser? Precisamos falar sobre isso… Precisamos falar sobre Kevin e sobre Eva, também.