Filme – Julieta

Por Ana Lucia Gondim Bastos

“Me ensina a não andar com os pés no chão,
Para sempre é sempre por um triz
Ai, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz”
Chico Buarque

Em Julieta (2016), mais uma vez, Pedro Almodóvar descortina nossa inevitável condição de aventureiros em alto mar. Seja do ponto de vista da realidade interna, seja do ponto de vista da realidade compartilhada, navegamos enfrentando sempre o desconhecido e o imprevisível. Ora um pouco mais no controle da situação, ora mais desnorteados, conduzimos nossas embarcações pelo mar dos acontecimentos, submetidos às intempéries, às marés e aos (des)encontros dos caminhos. As cartas náuticas traçadas por navegadores mais antigos, os instrumentos de navegação que vamos adquirindo no decorrer dos anos, nossos conhecimentos acerca de previsões meteorológicas, nada disso tira o caráter surpreendente da vida. Pois o que vai acontecer, como vamos reagir aos acontecimentos, como o outro que compartilha esses acontecimentos vai reagir e quais serão os encontros e desencontros oportunizados por tais acontecimentos e reações que , por sua vez, condicionarão novos acontecimentos e tantas outras reações… tudo isso só o curso da vida vai dizer e “quem viver, verá”.

O filme começa com Julieta sendo interpretada por Emma Suárez, mas enquanto conta sua trajetória até ali – num roteiro de surpresas, que faz lembrar o excelente “Tudo sobre minha mãe” (1999) do mesmo diretor – a jovem Julieta é interpretada por Adriana Ugarte (ambas em notórias atuações). O fio da meada que conta como Julieta/Adriana Ugarte se transforma em Julieta/Emma Suárez se estabelece pelo relato, em tom confessional, das memórias de sua história a partir do dia do primeiro encontro de Julieta com o pescador que veio a ser o pai de sua filha- Antía, a quem escreve tal relato. Assim se inicia mais um filme cuja maternidade aparece como relação central de um universo feminino muito bem explorado em diversos filmes de Almodóvar, sempre com cores fortes e gestos exagerados. Nessa trama, entretanto, ganham intensidade maior ao se entrelaçar, de especial maneira, com questões filosóficas e existenciais, de toda gente: O que faz valer à pena continuar vivendo ou, ainda, o que faz valer à pena deixar viva uma relação? Até que ponto somos capazes de evitar, ou mesmo prever, mortes e separações? E como cuidar do impacto delas na nossa vida e nas vidas dos outros envolvidos?

Um filme que nos remete à frase gloriosa dos antigos navegadores, que inspirou Fernando Pessoa: “Navegar é preciso; viver não é preciso”. E como fez o poeta em 1914, devemos continuar buscando o espírito dessa frase transformada para casar com o que somos, ou com o que podemos ser.

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