Livro – Sono (Haruki Murakami)

Certa vez, tão envolvida que estava na narrativa de um sonho, que uma criança bem pequena me contava, não me conformei com o final em aberto e indaguei: “E aí, como termina?”. Com sabedoria própria da infância e daqueles que não têm pressa de, como artesãos, tecer sentidos para sustentar o cotidiano, me respondeu: “Não, Ana, não tem final! Estou te contando um sonho, não um filme, entendeu?”. Talvez, tenha sido ela a primeira a me preparar para os textos de Haruki Murakami ou, quem sabe, tenha sido “A Metamorfose” de Kafka. O fato é que perdi o sono (sem querer fazer trocadilhos) enquanto não terminei o conto dele, “Sono”, lançado no Brasil, diga-se de passagem, numa edição belíssima da Editora Objetiva (sob o selo Alfaguara), ilustrada por Kat Menschik.

No texto, todo escrito em primeira pessoa, acompanhamos a protagonista insone, por noites a fio. Ao contrário de um estado de exaustão e de pouca produtividade na vigília, que períodos de insônia podem causar, a personagem se sente num movimento de ampliação da consciência e de resgate dos vestígios de quem fora antes do casamento, quanto mais as noites de sono se afastam de sua rotina. Passa os dias agindo mecanicamente, fazendo as atividades da vida diária como um robô (se é que já não fazia), esperando a hora  do marido e do filho caírem em sono profundo, para mergulhar, solitariamente, em seu mundo interno, acompanhada, primeiro por Tolstoi e sua Anna Karenina, e, depois, por outros escritores russos.

O tempo todo, seguimos, com a personagem, percebendo a passagem pelo dia de forma monótona e pela noite em tom de suspense. Os limites entre noite e dia, sono e vigília, sonho e transe, realidade interna e compartilhada, impressões e fantasias, ficção e relato de experiência, são todos muito tênues, no texto de Murakami, mas, também fora dele, como não?

Sem pregar os olhos fiquei horas acompanhando, no campo da ficção, 17 dias de uma pessoa que se sente mais inteira e viva, desde o dia que parou de dormir. Mas, se fosse um sonho da protagonista, os 17 dias poderiam, muito bem, ter se passado no número de horas que me custou a leitura (nem tantas assim). Murakami parece gostar de nos deixar nesse tipo de confusão: estamos mais vivos quando estamos sós ou acompanhados? Estamos mais acordados quando fechamos os olhos e sonhamos, quando nos entregamos a outra história durante uma leitura ou quando repetimos tarefas na/da rotina escolhida em nosso dia a dia? Em que hora do dia estamos mais apagados? E por fim… parece não haver dúvida que os romances russos sempre têm muito a nos dizer, mas será que sabemos bem o quê?

sono_ilustracao

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s