Por Ana Lucia Gondim Bastos
O diretor austríaco Michael Haneke tem especial talento em apresentar a indissociabilidade da tríade ser humano / sociedade e história, em seus roteiros brilhantemente dirigidos. Como numa faixa de Moebius – que traz uma continuidade entre a superfície externa e a interna, numa caminho sem fim ou início – Haneke apresenta, de forma particularmente desconcertante e delicada, como as mazelas sociais são constituintes e condicionantes da história e subjetividade de cada um de nós (em qualquer tempo histórico), mesmo que, por vezes e em alguns lugares, possamos nos perceber imunes ou distantes delas. Da mesma forma, e ao mesmo tempo, apresenta os mal-estares nas/das construções subjetivas constituintes e condicionantes de tais mazelas sociais. Essa indissociabilidade aparece com especial clareza em Caché (2005), mas também nos dois próximos filmes, Violência Gratuita (2008) e, ainda mais, em Fita Branca (2010). Neste último – passado pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial – tem explicitado, numa das falas de início, que o que viria a ocorrer na história, logo em seguida, pode muito ser explicado por aqueles acontecimentos vividos pelos habitantes de num pequeno vilarejo alemão. No caso, crimes misteriosos que, aos poucos, vão se relacionando com o grupo de crianças educadas sob a égide do autoritarismo patriarcal.
Em Caché, Daniel Auteuil interpreta Georges Laurent, um respeitado apresentador de programa televisivo de entrevistas sobre literatura. Casado com Anne (Juliette Binoche) e com um filho adolescente, tem sua tranquilidade abalada quando começa a receber, sucessiva e misteriosamente, fitas de VHS que mostravam a frente de sua casa filmada de um ponto fixo por horas seguidas, algumas embrulhadas em desenhos bastante rudimentares. As primeiras fitas entregues faziam crer que sua família seria vigiada, noite e dia, por uma câmera cuidadosamente instalada voltada para a porta da frente de sua casa. A sensação de insegurança e desconforto crescem na medida em que não consegue identificar uma forma possível de tal câmara ser posicionada daquela forma, também por não conseguir levantar suspeitas ou suspeitos que recobrissem de sentido essa bizarra situação. A partir daí, George começa a fazer girar seu caleidoscópio de imagens e sensações enviadas de um passado remoto, gerando circuitos associativos, nada confortáveis. Um pesadelo traz à tona momento chave, da infância de George, para a compreensão do que vinha “batendo à porta” para incomodá-lo: Sonha consigo aos 6 anos assustado com a violência com a qual outro menino da mesma idade mata uma galinha e se volta para ele com o machado na mão e o rosto ensanguentado. O pesadelo leva a reaproximação com a mãe para conversar sobre um passado engavetado e esquecido. Passado no qual os pais de George cogitaram adotar um menino, Majid, filho de empregados argelinos que sumiram depois de uma passeata em Paris, possivelmente, afogados no Sena por policiais franceses. George-menino assustado de 6 anos – temeu seu futuro compartilhado com um estranho e fez tudo para defender seu lugar no mundo, em um mundo em que Majid, como intruso e indesejado, introduz-se para conturbar. Na vida adulta, George, homem culto, dotado de informações e reflexão crítica acerca das questões sociais de seu tempo, acirra ainda mais a censura de conteúdos que ameacem tal identidade. George, então, afasta sua história, como se a despeito dela, e não em função dela mesmo, tenha se tornado quem se tornou. Até que, um dia, o passado se faz presente através de filmes de autoria anônima, realizados por uma câmera que, de fora da vida (e da casa) de George, o faz mergulhar na história apagada e, assim, construir para si, e para os demais, uma história em que todo absurdo da situação passa a fazer sentido. Um filme muito interessante para um momento, como o que estamos vivendo, de discussões tão importantes acerca de que políticas públicas podem (ou não) favorecer a sociedade como um todo.