Por Ana Lucia Gondim Bastos
“Vou lhe dar a chave das lacunas de minhas memórias”, canta o músico antropólogo Raúl Rodrígues, num dado momento do documentário de Miguel Ángel Rosales, “Gurumbé, canciones de tu memoria negra” (2016). As chaves que revelam fatores essenciais para o entendimento dos registros de memória de uma história, nunca ficam perdidas por acaso. Mais que isso, tais perdas, também, não são arbitrárias. Por isso, mais do que a pergunta sobre onde estão, é preciso perguntar porque estão perdidas ou esquecidas e, ainda, porque tais chaves, e não outras, foram deixadas de lado, a ponto chegarmos a pensar que nem existiram. A quem interessa tais perdas, ou as versões da história produzidas a partir do escamoteamento das lacunas, não é menos importante perguntar, se há interesse de resgate da memória de uma história que nos trouxe até aqui.
Rosales, apresenta uma história silenciada de séculos de escravidão na Península Ibérica. Os navios negreiros não chegavam apenas nas colônias, mas também, e em grande número, chegavam, diretamente, nos principais portos de comércio de Portugal e Espanha, desde o final do século XV. Milhares de pessoas chegavam nesses navios para serem comercializadas em praça pública, em Sevilha, Jerez ou Cadiz. Comércio assistido pela população em geral como espetáculo. Suas peles eram marcadas para se deixar claro que pertenciam a outrem, que não seriam mais donos de si. Perderiam qualquer direito humano e viveriam para servir, a partir daquele momento, sem direito, inclusive, a passado ou a projeção no futuro. Esse era o ditame de seus senhores. Acontecia como na primeira canção do documentário: “um dia te dizes que és diferentes e que, a partir de hoje tu tens que sofrer”. E quem diz isso é um homem como tu és.
Só que ninguém vive só para servir e a força criativa do ser humano, inscrita em seu psiquismo a partir do contato da pele com a mãe, com a cultura e com as “canciones de tu memoria negra”, ou seja, com as raízes que o faz humano, possibilita que brote esperança e sentido de solos improváveis, de tão áridos. Esperança e sentido de resistência à opressão, a força que faz continuar a viver, ainda que sofrendo muito mais do que se alegrando, no corpo que dança, que canta, que ama e poetiza a vida.
Mais do que nos registros arqueológicos, nas ossaturas encontradas ou nos documentos de compra e venda de escravos, mas também neles, Rosales vai buscar a presença esquecida dos africanos negros, na história da Andaluzia, na música, na dança e na expressividade cultural, de um modo geral. Ou seja, no que está vivo e pulsante, no que se ressignifica e resiste, naquilo que as versões oficiais não pode controlar tanto, pois escapa à censura. Naquilo que, de tão misturado, não se pode separar uma parte, para negar sua existência. E, com simplicidade e beleza, nos mostra que é, justo aí, que as chaves para as lacunas de memória menos conseguem se esconder.
É assim que – num momento no qual fronteiras começam a ser cada vez mais vigiadas e se fecham para o de fora – Rosales tira o véu e evidencia que o de fora, hoje tido como intruso e indesejado, na verdade, é muito mais íntimo do que se quer crer, “está debajo de la piel, está muy cerca”, nas palavras do cineasta. Urge que possamos perceber que o que assistimos hoje é fruto de uma história silenciada e que, ao deixarmos esquecidas as chaves das lacunas de nossas memórias, estamos sendo cumplices de grandes injustiças e de perigosas desresponsabilizações. Sem dúvida, Gurumbé é uma inspiração para que encontremos caminhos de resgate de tanta história perdida ou esquecida. Tanta história que, ao nos apropriarmos, com certeza, nos tornará mais potentes e criativos.