Por Ana Lucia Gondim Bastos
(texto com spoiler do filme)
Confesso parco repertório de filmes envolvendo super-heróis, ainda que reconheça o potencial, que tais filmes comportam, para boas análises acerca de psicopatologias e mal-estares na civilização. Mas, em função dos encontros que a vida favorece, acabei indo assistir a Logan (James Mangold, 2017). Logo de início, as cenas de violência explícita, com cabeças e membros rolando e espirrando muito sangue, me fez lembrar porque, geralmente, me poupo de tais filmes de ação. Mas, assim que me acostumei com a estética, com a velocidade (e a ferocidade) das cenas, pude me ater ao roteiro e às características de personagens que me trouxeram boas reflexões.
A história se passa em 2029, quando os últimos mutantes que habitam o planeta, encontram-se à beira da morte, seja por suas fragilidades físicas ou psíquicas. Logan (interpretado por Hugh Jackman), trabalha como chofer, toda vez que aluga seu carro de luxo, escondendo (quem sabe, até negando), o máximo que pode, suas garras de Wolverine. Desiludido e desesperançado vive sob efeito de drogas e se dedica a cuidar do nonagenário Xavier (Patrick Steward) com a única ajuda de Caliban (Stephen Merchant), mutante com uma terrível intolerância à claridade. Num cenário soturno, Xavier ainda busca cuidar da vida e cultiva um mini jardim, dentro do tanque antigo, que foi lhe dado como morada. Depois de perseguida e, praticamente, exterminada a última geração de mutantes (pessoas que, por sua própria condição, apresentavam possibilidades de mudança no mundo), os três sobreviventes, pareciam só poder esperar a morte, num mundo repetitivo e sem espaço para o novo, ou mesmo para eles (já nem tão novos). Até que uma enfermeira mexicana (Elisabeth Rodriguez) insiste em pedir ajuda a Logan e o envolve numa misteriosa perseguição, da qual, provavelmente, não sairia viva, mas precisaria salvar a criança que traz consigo.
Laura Kinney/X-23 (Dafne Keen, em atuação surpreendente), de 11 anos, é reconhecida por Xavier e Caliban como representante de uma nova geração de mutantes. Depois de muito resistir, Logan percebe-se sem alternativa e, ainda que sem acreditar que exista um lugar seguro para essa criança – fora das fantasiosas revistinhas de HQ – começa o tortuoso percurso para leva-la ao Éden, onde os mutantes poderão viver juntos e em paz. Até aqui, parece apenas um roteiro de aventura com muito espaço para acidentes envolvendo carros, lutas homem a homem e muito sangue jorrado. Em parte, é isso mesmo! Mas, também, é bem mais que isso. Laura e as outras crianças perseguidas são frutos de experimentos médicos americanos, realizados na população de baixa renda mexicana. A ideia de produzir mutantes em laboratório unicamente para servir ao poder político vigente, usando os genes dos mutantes, usando as mulheres pobres que depois poderiam ser descartadas, sem importar como, e usando as próprias crianças que cresceriam sem sonho ou possibilidade de outro futuro, traz uma crítica política que em muito me surpreendeu. O apego e o cuidado das enfermeiras, contudo, desviaram o caminho traçado para tais crianças e fizeram delas um perigo de renovação (inclusive, para a vida de Logan).
Então, o filme fala da luta (às vezes, literal) dos oprimidos para poderem existir e trilhar caminhos próprios, para não terem que se submeter a serem máquinas de manutenção de um mundo no qual só podem ter lugar como máquinas. Fala, também, da psicopatia dos poderosos que passam como rolo compressor em tudo e todos, com o único intuito de se tornarem ainda mais poderosos e, principalmente, fala de como, nesses processos, todos saem perdendo. O mundo inteiro sai perdendo e a humanidade fica ameaçada. Tudo isso tão claro numa sala de cinema escura, lotada de jovens devorando pipocas e, talvez, focados só no sangue jorrando, nos golpes de luta e nos carros explodindo… Mas, de todo modo, saí com esperança de que alguns notassem que o Éden realmente não existia, precisava ser criado para que as crianças pudessem, em segurança, sonhar com um mundo sem guerras, para lá da fronteira. Um mundo no qual as pessoas não precisem se machucar mutuamente, pois, como Logan chega à conclusão com Laura, não importa a justificativa, machucar outras pessoas é sempre motivo de pesadelo e dor. Para completar minha absoluta surpresa com o impacto do filme sobre mim, saí lembrando da Hannah Arendt, em “A Condição Humana”, quando diz: “O novo sempre aparece contra esmagadoras chances estatísticas e suas probabilidades, que, para efeitos práticos, todos os dias, equivale à certeza; o novo, portanto, sempre aparece sob o disfarce de um milagre”.
Sua crítica transportada para a esfera política( nos tempos de Doriana) daria uma bela metáfora!
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também, achei! O filme, realmente, me surpreendeu, pelas possibilidades para análise que abre.
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