Por Ana Lucia Gondim Bastos
Ao buscar as referências do documentário, original da Netflix, Audrie & Daisy (Shenk & Cohen, 2016), encontrei uma sinopse que me chamou muito a atenção: dizia se tratar de um documentário acerca de jovens vítimas de estupro, numa festa em que foram dopadas por garotos que consideravam amigos e, depois, assediadas virtualmente. Imagino que o autor de tal sinopse nem tenha se dado conta que, para apresentar as jovens como vítimas, tenha precisado coloca-las como ingênuas indefesas. E se não tivessem sido dopadas? E se aceitaram o convite de entrar no carro dos rapazes que as levariam para festa e, inclusive, estivessem interessadas por eles? E se tivessem bebido até perder a consciência (nada incomum, diga-se de passagem, numa fase de descobertas de limites, inclusive, do corpo)? Qualquer situação dessas poderia fazer com que meninas de 14, 15 e 16 anos deixassem de ser vítimas, numa situações de abuso sexual e exposição pública desse abuso?
Precisamos falar sobre isso… Será que a história precisa, mesmo, ser editada, para que a vítima não perca o lugar de quem não merecia passar pelo que passou? Alguém merece ter seu corpo, e posteriormente imagem, violentados, por estar desacordada por tanto beber?
Pois, Audrie e Daisy, tampouco as outras corajosas meninas entrevistadas para o documentário, não foram dopadas. Eram adolescentes se divertindo com outros adolescentes, em ambientes que consideravam seguro, por confiar nas pessoas ali envolvidas. Pessoas de convivência cotidiana, a turma da escola ou os amigos do irmão poucos anos mais velho. Sim, elas beberam, e beberam porque quiseram, antes de serem estupradas. A maioria sem muita noção dos limites do organismo… E quem tem, na adolescência? A banalização do ato fez com que os agressores (também adolescentes num ambiente festivo de encontro com amigos) filmassem o feito criminoso, para postar nas redes sociais, como fora divertido o final de semana.
Mas, como foi que as meninas, que se vestiram de princesa na infância, viraram vítimas dos coleguinhas que as defendiam com suas espadas de plástico e capas de super herói? Viraram vítimas, justamente, porque eram meninas e, meninas, na lógica machista, devem saber ter e dar limites. Devem saber se cuidar e se defender, daqueles que um dia serão seus protetores e provedores, até para que eles as respeitem, a ponto de virem a sê-lo. Então, devem “se dar o respeito”, ainda que isso implique em não desejar, não arriscar e, o que é pior (se é que tem pior, nisso tudo), ainda que implique em não confiar na parceria de outro adolescente que, como ela, está começando a conhecer e a fazer escolhas do e no mundo adulto. Isso é tão naturalizado, em nossas relações sociais, que faz com que alguém que vá escrever uma sinopse sobre um documentário que trata, exatamente, disso, se preocupe em “cuidar” da imagem das vítimas, desresponsabilizando – as do estado de embriaguez que se encontravam.
Sim, precisamos falar sobre Audrie, sobre Daisy, sobre todas as meninas que passaram por abusos e exposição nas redes sociais. Precisamos falar sobre os ponto e vírgulas que tatuam no corpo e na alma, quando conseguem sobreviver. Precisamos falar sobre as sobreviventes e as que não resistem. Sobre as que lutam e sobre as que se escondem, com medo de sofrer ainda mais. Precisamos, sim, falar mais sobre elas e sobre a cultura do estupro. Sobre as que reproduzem as falas machistas, ainda que sofrendo suas consequências. Precisamos, também, falar sobre os meninos que nunca se imaginaram capazes de cometer crimes e o fazem, sustentados por essa cultura. E, também, sobre os que não conseguem impedir que o crime aconteça e assistem a tudo, muitas vezes gravando, em seus celulares, aquelas cenas de terror. Precisamos falar sobre impunidade, desproteção e sobre as barreiras atitudinais que nos impedem de conversar sobre isso, abertamente, com nossos adolescentes. Barreiras construídas com base na ideia de que se a menina não é princesa de conto de fadas (e ela nunca é), ela é bruxa ou vadia e, portanto, merecedora de qualquer invasão ou violência. Falando sobre isso, talvez, seja possível começar a desconstruir torres de isolamento que nos fazem crer que, um lugar seguro (e feliz) no universo adolescente, só dependa da realidade forjada pelas imagens tratadas com mil filtros do instagram.