Filme – Cidadão Ilustre

Por Ana Lucia Gondim Bastos

Certa vez li em algum lugar, se não me engano numa entrevista concedida por Bruno Barreto, que três anos fora da terra natal nos condena à condição de estrangeiros pro resto da vida, estejamos onde estivermos. Ousaria completar dizendo que tal condição pode, inclusive, passar transgeracionalmente, fazendo com que pessoas nasçam e cresçam nela, numa espécie de entre lugares cultural. Talvez tenha sido esse sentimento que levou Gilberto Freyre a escrever o primeiro guia de uma cidade brasileira: o Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife (1930), escrito após anos estudando no exterior. De volta à capital pernambucana, se dedicou a contar, a um interlocutor turista, o que e como entende sua cidade natal, sobre lugares de especial interesse, seus personagens, seus modelos de vida e o desconforto mediante às mudanças que observava. Imagino o exercício que foi se colocar no lugar desse turista com o qual conversa e com quem se identifica.

Por coincidência, enquanto lia o tal guia, recém chegada da minha primeira viagem a Recife, fui assistir ao filme argentino “Cidadão Ilustre” (Gastón Duprat e Mariano Cohn, 2016) que, com engenhoso roteiro de Andrés Duprat, conta a história de Daniel Mantovani (papel de Oscar Martinez, que também teve relevante atuação em Relatos Selvagens*), nobel de literatura, há 20 anos afastado de sua terra natal, a pequena Salas no interior argentino. Daniel, passando por um momento de crise de criatividade e imerso em questionamentos acerca do valor de sua obra, agora, aclamada, resolve aceitar um convite para voltar a conservadora Salas, onde seria condecorado com o título de cidadão ilustre. O encontro com o passado, num presente no qual aqueles personagens e aqueles modelos de vida só fazem parte na ficção de seus livros, faz o futuro de Mantovani ser colocado em xeque. A todo momento assistimos a Mantovani se perguntar porque saiu de lá e a receber respostas imediatas. Ele é tão de Salas e tão pouco de lá, ao mesmo tempo. Paradoxos vividos por todos os estrangeiros que não são meros turistas de um lugar qualquer, a todos os habitantes dos entre lugares mundo afora, a todos que quando voltam aos lugares que julgavam seus, percebem que, se um dia a saída foi um movimento de fuga, depois de um tempo, passou a ser uma inevitabilidade da vida.

*https://tecendoatrama.com/2015/05/25/filme-relatos-selvagens/

cidadão-ilustre-poster

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