Por Ana Lucia Gondim Bastos
“Enquanto escrevo, seres humanos altamente civilizados estão sobrevoando, tentando matar-me. Não sentem qualquer inimizade por mim como indivíduo, nem eu por eles. Estão apenas ‘cumprindo o seu dever’, como se diz. Na maioria, não tenho dúvida, são homens bondosos e cumpridores das leis, que na vida privada nunca sonhariam em cometer um assassinato. Por outro lado, se algum deles conseguir me fazer em pedaços com uma bomba bem lançada, não vai dormir mal por causa disso. Está servindo ao seu país, que tem o poder de absolve-lo do mal”(George Orwell, Inglaterra, tua Inglaterra, 1941)
O anúncio da chegada de cada novo indivíduo coincide, para todos os que participam do seu grupo social, com o fato de ser indispensável inseri-lo num mundo repleto de significados que, em consequência, irão configura-lo membro daquela cultura. Isso quer dizer que o acontecer humano está inexoravelmente condicionado por relações sociais, de modo que qualquer recorte existencial feito na vida de um sujeito revelará a impossibilidade intrínseca da existência de um ser que não seja plasmado por uma cultura. Dito de outro modo, “todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política ( Arendt, 2000). É essa autora que nos lembra que, em latim, VIVER e ESTAR ENTRE OS HOMENS (inter homens esse) ou MORRER e DEIXAR DE ESTAR ENTRE OS HOMENS (Inter homens desinere), são expressões sinônimas. A consequência imediata desse pressuposto é o de que o momento de nascimento de uma pessoa demarca, também o início da vida em um paradoxo, qual seja a de ser singular e plural sempre, e a todo momento. Igualdade e diferença o EU e o OUTRO. Quando passamos a existir, o fazemos num mundo de muitos outros, construído por um intrincamento de redes de sentidos, as quais garantem, a cada novo indivíduo, interagir significativamente, de maneira particular e irrepetível. E a partir daí ser “capaz de exprimir essa diferença e distinguir-se; só ele (o ser humano) é capaz de comunicar a si próprio e não alguma coisa – como sede, fome, afeto, hostilidade ou medo. No homem, a alteridade, que ele tem em comum com tudo o que existe, e a distinção, que ele partilha com tudo o que vive, tornam-se singularidade, e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres singulares” (Arendt, 2000). Paradoxo que leva a arquitetura de espaços de construção, nos quais seja permitido, às singularidades, a assimilação, a elaboração e a expressão da experiência emocional, no/com o mundo. Por isso é próprio da espécie humana a necessidade da produção artística, aquela que transita na tal dimensão paradoxal, discutida por Arendt.
O documentário “A Arquitetura da Destruição” (Peter Cohen, 1989), apresenta, partindo do ponto de vista estético, o ideal nazista de embelezamento do mundo e seus pressupostos de base, como os projetos de aniquilamento da diversidade humana e suas formas de expressão, engendrando um projeto de destruição e extermínio em massa. Através da discussão acerca das expressões artísticas rechaçadas, assim com das valorizadas, pelo Nacional-Socialismo de Hitler, Cohen vai desenhando o contorno do que foi o movimento Nazista, em suas dimensões histórica, espacial e ideológica. A arte moderna, considerada representação do caos, da degeneração e da depravação cultural e espiritual, deveria ser banida, expurgada, pois, no dizer de um dos membros do Movimento de “Defesa da Cultura Alemã Nazista”, Schultz-Naumbunrg: “a arte é o espelho da saúde racial”. Portanto, valorizar obras da antiguidade greco-romana e do Renascimento, também gestas germânicas com seus guerreiros e valquírias, seria uma ofensiva de caráter higienista contra tudo o que pudesse possibilitar a proliferação das pestes ou propagação de doença. Saúde e beleza passam a se confundir e, portanto, o médico vira o perito em embelezamento e limpeza do mundo”. Como líder da política racial, em busca do sangue puro, os médicos teriam (e tiveram) legitimidade para práticas de qualquer ordem (inclusive de extermínio dos que não teriam como se curar de sua deformidade ou miscigenação). Assim, teriam um mundo salvo dos conflitos, inclusive das lutas sociais. Os fuzilamentos foram dando lugar a formas cada vez mais eficazes e “limpas”de extermínio, com câmeras de gás que matavam quem, à semelhança de insetos, poderia transmitir doenças, contaminando um mundo, “em vias de se tornar puro”.
Não podemos deixar de observar, que se houve um extermínio em massa, houve, também, um movimento de massa para o extermínio. Em Psicologia de Grupo e Análise do Ego, Freud (1921) lança mão da descrição de mente grupal, desenvolvida por Le Bon (1855), para discutir justamente, o fenômeno da mudança comportamental de indivíduos, na condição de parte de um grupo (mais precisamente, de uma massa). Tal mudança de comportamento não se traduz em ações insignificantes no qual toca a princípios e valores, tampouco, necessariamente, em situações de ruptura da ordem, como se fosse uma atitude de descontrole. Muitas vezes, esse tipo de mudança comportamental é observado em homens disciplinados, uniformizados e obedientes – como bem analisa Bauman em Holocausto e Modernidade (1998) – homens que, em suas vidas privadas, educam seus filhos de maneira nada bélica, preocupados em manter um ambiente de tranquilidade e paz familiar, mas que, sob as ordens de um comandante-chefe, são capazes de torturar e matar outros homens, sem considera-los, também, como pais de família ou filhos amados. Assim, podemos dizer que o indivíduo imerso na massa, organizada ou não, afrouxa a tensão da paradoxalidade da condição humana, como se não houvesse lugar ou forma de ser singular, mas apenas a alternativa de ser parte daquele organismo.
Então, podemos concluir que a preservação da humanidade está intrinsecamente ligada à preservação dos espaços de produção artísticas e de garantia das manifestações da diversidade humana, em todos os campos. Estejamos atentos porque salvos de nossas próprias armadilhas, nunca estaremos. É o que um filme desse nos faz pensar.
Ana, seu texto é fundamental para nos acordar para a percepção das diferentes armadilhas que tem surgido nos últimos tempo. E são muitas! E são globais e locais, ou seja, atingem o ser humano nas suas relações pessoais e nas suas relações virtuais ou coletivas. Precisamos estar atentos….
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Concordo plenamente, Celia! A atualidade da discussão não pode ser desconsiderada ou minimizada.
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