41 Mostra de Cinema – Vida Fácil

Por Ana Lucia Gondim Bastos

Vivemos em tempos de profusão de receitas de bom viver e caminhos para o sucesso. Sem oferecer clareza acerca do que se considera sucesso ou critérios de avaliação de bom viver, centenas de livros, sites, blogs, vídeos, trazem alento aos corações angustiados, garantindo a possibilidade de vida tranquila e sem sobressaltos, no encontro do caminho certo e da auto confiança. Nessas receitas, tudo parece muito simples: uma vida fácil, bem ali na frente, sem conflitos, sem pelejas, sem dúvidas e com muita satisfação e realizações de todas as ordens. Esse paraíso prometido costuma ter sua existência comprovada, nas páginas de facebook daqueles que atingiram a glória e todos os seus portentos (muitas vezes, os mesmos que, generosamente, oferecem suas receitas de felicidade nos diversos meios de comunicação). Bons casamentos, empregos rentáveis, tranquilidade para viver um presente de realizações, com um futuro garantido, filhos de ouro e saúde para dar e vender, no caso de alguns, parecem conquistas tão banais, aos olhos de outros que parecem sempre meio fora de foco dessas exigências sociais introjetadas e naturalizadas. A vulnerabilidade de quem acha que deveria/ poderia ser melhor do que é, deveria/poderia conquistar outras coisas, além do que conquista, por mirar-se num espelho social generoso, idealizado e, portanto,  ilusório, torna essas receitas de felicidade vendáveis e, dignas de credibilidade e adeptos.

O primeiro longa do diretor Adam Keleman, Vida Fácil (2017), trata dessa tentativa desesperada de encontro de um lugar ao sol e sentido para a dureza da vida. O roteiro desafia a talentosa Caroline Dhavernas a entrar numa personagem que transita entre quase todos os gêneros de narrativas –  comédia, drama, romance, suspense – assim, como acontece com todos nós, mortais.  Sherry é uma solitária e determinada vendedora de cosméticos num típico bairro de subúrbio americano. Inspirada pelos textos da literatura de auto ajuda, segue seu caminho de porta em porta, dia após dia, para garantir o pagamento de um quarto de hotel barato e seus drinques diários em bares  de onde, todas as noites, sai com um parceiro de ocasião. Quando está sozinha, são os filmes antigos, os companheiros que estimulam sua imaginação. A incoerência  entre os textos de auto ajuda, que costuram toda a narrativa do roteiro, e o vazio que vai se desenhando na vida da personagem, ora ganham tom  dramático, ora tragicômico. A visita à irmã mais velha que cria a filha que Sherry teve há 10 anos e as, inevitáveis cobranças (internas e externas), proveniente desse encontro anual, fazem com que ela passe a fazer planos mais audaciosos, como o de abrir um cabeleireiro com a única amiga e porto seguro, Danny (Jen Richards). Danny é uma personagem trans, casada e, aparentemente, conformada com seu emprego de garçonete, assim como com o resto de sua vida. Quando escolho o termo conformada para descrever Danny, não falo de uma atitude passiva e resignada diante da vida ( o que parece, inclusive, improvável numa história na qual, supostamente, coube uma mudança de gênero). Falo de uma atitude pacífica diante da forma que tomou sua vida e seu cotidiano (provavelmente, nada perfeito, mas, suficientemente bom), o que não a torna mais um dos corações angustiados em busca de respostas. Chama atenção, nesse sentido, a cena na qual lê o horóscopo da amiga, no dia em  que Sherry vai sair com um parceiro cujo interesse passou da primeira noite, e depois que lê, queima-o, dando a entender que tais textos de previsão do futuro, muitas vezes, não levam a atitudes de protagonismo. E, assim, o filme de Adam Peleman vai contando sobre seus personagens pelas suas ações, sem a pretenção de grandes análises psicológicas ou dando muitas pistas acerca de como chegaram ali (a irmã de Sherry vive com uma moça negra e seu filho adolescente e não fica claro qual a relação que as une, Danny aparentemente é trans mas nada é dito sobre isso ou sobre qualquer aspecto de seu casamento com Gold (Daniel Eric), assim como, nada é mencionado acerca da história da maternidade de Sherry), o que, de forma alguma, deixa o filme ou seus personagens mais rasos. Só os torna personagens do dia a dia, com suas fragilidades e fortalezas, todos muito humanos, até no surpreendente final. Sem dúvida uma boa entrada na 41 Mostra de Cinema deste ano!

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