Por Ana Lucia Gondim Bastos
Lembro-me bem da época de lançamento desse filme de animação, aqui no Brasil, em 2002. Tinha filhas pequenas e, então, acompanhava de perto os lançamentos infantis de um modo geral. Chegamos a ter o DVD que nunca foi dos mais populares, entre as crianças, tampouco fazia parte dos esquecidos no fundo da gaveta. Também eu, não tinha severas críticas ou grandes encantamentos pela obra. Sempre acho triste, e me incomodam, esses desenhos cujo cenário é a colonização do meio oeste estadunidense. Como no caso de Spirit, durante o filme, sempre tendemos a nos chocar com as atitudes violentas dos colonizadores e a torcer pelos índios que bravamente tentam resistir ao massacre, mas, fora dali, sabemos que a história resultou em populações indígenas dizimadas e e culturas devastadas, com a utilização das mais covardes estratégias, e isso nem nos comove tanto. Ou seja, como é frequente, torcemos individualmente pelos personagens e, parafraseando Shakespeare, “tudo bem quando tudo termina bem”, no filme e para aqueles personagens que nos afeiçoamos durante o tempo que assistimos suas trajetórias. Podemos, enfim, dormir em paz, com a sensação de que tudo aquilo foi resolvido, e bem resolvido. Para além desse incomodo, o filme traz discussões interessantes, mas, que eu considerava um tanto superficiais e não dignas de nota, até que, depois de 15 anos, uma menininha de 6 anos me apresentou o filme como o seu predileto. Depois de algumas conversas com ela, fui assistir ao filme do qual poucas partes me lembrava, e outros aspectos me saltaram aos olhos.
Spirit é um corcel, líder de uma manada que vive livre da ação domesticadora do homem, aliás nem conhece tal espécie animal. Seu primeiro contato, com o homem, se dá quando, por curiosidade, se aproxima de um acampamento de colonos. Logo vira questão de honra, para tais colonos, aprisionar e domar Spirit, que resiste firmemente. Então, é levado ao forte dos colonizadores e é torturado, de todas as formas, para que se submeta às vontades humanas. Lá, conhece um homem, um índio, que é tratado da mesma maneira que os cavalos, torturado enquanto insubmisso, e, com ele, estabelece uma relação de parceria. A relação do cavalo com o índio transforma-os mutuamente, fazendo-os refletir acerca da importância do respeito à liberdade do outro ser ele mesmo, de como os laços afetivos podem fazer valer algumas renuncias e como liberdade se relaciona com autonomia e não com independência em relação ao outro. Tudo com o que, uma menina de 6 anos, está tendo que aprender a lidar, nos diversos aspectos da vida dela. Precisa se submeter aos códigos da língua escrita, aos horários, às regras de boa convivência e tudo isso, apesar de implicar em muita renuncia, pode valer à pena, mas pode ser coercitivo e violento, também. Os colonos, do filme, possuem cavalos tristes, submissos e sem esperança de que algo possa ser diferente. Cavalos marcados à ferro e fogo, com ferraduras pregadas às patas e crinas cortadas segundo um padrão estético definido pelos homens, que faz com que de longe se perceba que aquele foi bem domado. A relação de Spirit e do índio parceiro de fuga do universo dos colonizadores, mostra que as coisas podem ser diferentes. Lembrou-me um texto antigo do saudoso Rubem Alves:
Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas.
Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo.
Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o vôo, isso elas não podem fazer, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O vôo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.
Essa pequena, que me fez assistir a Spirit com outros olhos, seguramente preza suas asas e conhece seu potencial. Talvez, também, tema perder tudo isso, à medida que cresce. Cabe a nós encoraja-la, fazendo-a acreditar na diversidade que o mundo comporta e a perceber que as renuncias que transformam nossas vidas no sentido da autonomia e abertura de novas formas de apreender e se expressar no coletivo, não precisam, nem podem, acontecer com violência e rigidez coercitiva. Do contrario seremos seres a repetir padrões que nos massacram. É por essa e por outras que sempre opto, como Gonzaguinha, por ficar com a pureza da resposta das crianças!
Gratidão por compartilhar, MT especial, reflexão perfeita.
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