Por Ana Lucia Gondim Bastos
Já havia lido alguns comentários sobre o último filme de Darren Aronofsky, Mãe! (2017). Tais comentários haviam me prevenido quanto a força das imagens e a atmosfera de destruição do filme: múltiplas referencias a passagens bíblicas, a mãe natureza na sua casa planeta sendo invadida e devastada e, todo, o aspecto apocalíptico consequente dessa devastação. Por aí, cheguei ao filme esperando algo na linha de outros filmes do diretor, como Réquiem para um Sonho (2000), Fonte da Vida (2006) ou mesmo Noé (2014). Mas, na verdade, o filme acabou me levando muito mais para discussões teórico-clínicas da psicanálise do que existenciais-filosóficas, como estava esperando (se é que é possível fazer essa distinção). Explico-me dizendo que acabei colocando Mãe! muito mais na linha do impacto que me causou O Lutador (2008) ou Cisne Negro (2010), dois outros filmes do Aronofsky.
Logo quando o filme começa uma casa passa a ter vida. Vida que tem início com Ele (como é chamado o protagonista interpretado por Javier Bardem) encontrando, cuidadosamente, um lugar para uma pedra, com valor de pedra filosofal ou, talvez, de pedra angular. Conta que o encontro da pedra fora concomitante ao com uma jovem, Veronica (Jennifer Lawrence), a responsável por tornar a casa viva e habitável, fazendo todas as reformas necessárias para cuidar das imperfeições , tornando-a limpa, funcional e bela. Enquanto reboca e pinta as paredes, muitas vezes, percebe, nelas, o pulsar de veias, de vida, o que nos faz pensar numa casa corpo, um organismo. Quando Veronica começa a se desorganizar diante das invasões de estranhos, por Ele permitidas, estranhos que, inclusive, quebram a tal pedra de valor inestimável, feridas se abrem e sangram a casa, outras vezes são expostos labirintos através de paredes quebradas, enquanto mais e mais, estranhos chegam, sem que Veronica dê conta de expulsa-los ou controla-los. Não pude deixar de pensar que Veronica pode ser entendida como metáfora de um ego frágil, que “chega” junto com “a pedra angular sobre a qual repousa toda a psicanálise”, segundo Freud (1915)*: o Recalcaque. Pensando assim, temos mais um belo filme sobre um duro processo de esfacelamento de um aparelho psíquico durante o processo de trabalho de afetos e representações. Aqui as referências bíblicas (Adão e Eva, o pecado original, a rivalidade entre Caim e Abel etc) fazem todo o sentido, já que as representações referem-se às ideias que representam a pulsão e, em virtude desse seu papel, estão ligadas ao fator histórico-cultural, dada a sua relação constitutiva com o objeto externo. Já o afeto concerne ao aspecto quantitativo, ao quanto um determinado conteúdo é investido de energia pulsional. Freud chega a esse modelo de aparelho psíquico quando passa a privilegiar a história de vida de seus pacientes, dando-se conta de que as pessoas não dispõem de acessos irrestritos à trama de representações e significados que constituem suas narrativas. Ao contrário, as falhas de memória e as rupturas existentes nas narrativas de seus pacientes passam a denunciar uma resistência à permissão para que certas ideias, ou melhor, que certos sentidos, tivessem acesso à consciência, evitando, dessa forma, a emergencia de conflitos dolorosos. Os invasores cuja ação Veronica não consegue limitar na casa, passam, então, a ameaçar as estruturas da mesma, assim como a própria integridade de Veronica. Essa luta por permanecer viva e produtiva, numa casa na qual a pedra angular fora destruída e que não pára de ser invadida por pessoas/conteúdos deveras perturbadores e, por ela, desconhecidos, oferece, nessa perspectiva, uma ilustração do processo de enlouquecimento, da perda de sentido, da destruição dos marcos fronteiriços, quando tudo se mistura sem contenção possível, sem gestão ou manejo, apenas invasão e caos. A luta é árdua e de uma dor profunda. No final arrastado, talvez pela necessidade, do diretor, de explorar todo um arsenal de desvarios, de males da caixa de Pandora soltos na humanidade, Veronica sucumbe em cinzas. O desfecho escolhido (que não vale à pena detalhar, para não perder a surpresa, para quem ainda não assistiu) abre para múltiplas interpretações dependendo da linha interpretativa escolhida pelo espectador: mas pode dar margem para a esperança de reestabelecimento de vida ou à desesperança da repetição. Sem dúvida, Darren Aronofsky, a despeito das críticas que possam ser feitas aos seus filmes, consegue incomodar e fazer pensar, o que já atribui grande importância e valor à obra de um artista. Portanto, é um diretor cuja trajetória merece ser acompanhada, e Mãe! (2017) me parece fazer muito sentido, nessa trajetória.
Mais uma observação que aproxima Mother de Cisne Negro, a ser compartilhada: agora me dou conta que a mesma rachadura na cabeça de Jennifer Lawrence, no cartaz de Mother!, aparece num dos cartazes de Cisne Negro, na cabeça de Natalie Portman.