Documentário – Construindo Pontes

Por Ana Lucia Gondim Bastos

Logo que terminei de assistir ao documentário de Heloísa Passos, Construindo Pontes (2018), me lembrei da dedicatória do livro de Walter Benjamin “Rua de Mão Única”(1928);

“Esta rua chama-se Asja Lascis, em homenagem àquela que, na qualidade de engenheira, a rasgou dentro do autor”

Imagino que uma dedicatória semelhante coubesse a Alvaro, em Construindo Pontes, pai da diretora e engenheiro por profissão. Primeiro por se referir a uma dedicatória que fala de uma relação de amor,  amor que promove importantes modificações nas redes “viárias”, ou melhor dizendo, representacionais do sujeito/autor. Amor que rasga ruas, constrói pontes, aterra vales, inunda ecossistemas. Histórias de amor assim, sem dúvida tem um impacto ambiental na subjetividade de quem experiência, muitas vezes, com forte ação devastadora.

Através do documentário, Heloísa parece buscar redefinir um equilíbrio, num novo patamar. Não no registro, meramente, das vivências, usando o conceito de Silvia Bleichmar, que entende vivência como da ordem da percepção dos fatos ocorridos, de um registro sem sujeito. Mas, numa troca de registros de experiências, das formas pelas quais o sujeito se apropria das vivências, de acordo com suas redes representacionais. Digo trocas, porque, nessa empreitada, Heloísa não coloca Alvaro como personagem sobre o qual se fala em especulações acerca do que acredita importante para o desenvolvimento de uma nação ou de suas filhas. É dada a ele voz e escuta, assim como é dele exigida a escuta para construção de pontes simbólicas, através das quais o encontro subjetivo possa se dar. E subjetividade é produzida em termos sociais, econômicos, políticos. A produção de subjetividade é absolutamente histórica, com todas as suas condicionantes: cultura familiar, regional, classe social, momento histórico, história de vida. Tudo isso imerso em valores, conhecimentos, informações, relações de poder, lacunas, ditos e não ditos.

Assim, o filme pulsa do coletivo para o particular o tempo todo. Numa entrevista dada ao site Sul21, Heloísa conta da dinâmica desse reencontro documentado, num momento histórico duro como o que estamos vivendo. Diz ela “O filme se constrói em cima do que a gente vai vivendo. É olhar para as memórias e o presente eclodir com elas”. E assim, quando ela fala que o filme é sobre arbitrariedades, nos remete as de dentro e as de fora da casa de Alvaro, as de ontem e as de hoje. Acho que essa é a maior beleza do filme (além do encontro humano que se deu no processo), as múltiplas dimensões que se abrem em cada imagem, em cada fala.

Heloísa incomoda-se com os não ditos e com as barreiras que represam a agua para manter o controle de sua descarga, a despeito de deixar territórios inteiros submergidos. Alvaro considera tudo isso absolutamente desejável e necessário para manutenção da ordem, garantida por um status quo. Heloísa constrói filmes valorizando processos e a honestidade das imagens. Alvaro pavimenta estradas e valoriza os fins que legitimam os métodos e alagamentos. Heloísa cresceu vendo o pai registrar momentos e lugares, sempre com uma câmera na mão. Ambos são bons no ping pong e na natação, apesar de fazerem força para nadar. Foi Alvaro quem ensinou Heloísa a nadar e a ir cada vez mais fundo. São eles quem nos oferecem a perspectiva de que não estamos condenados a repetir sentidos, vida afora. Fica, também, a preocupação (e, quem sabe, o compromisso) de não permitirmos que nossas rugas nos sirvam como lacunas para a falta de argumento, no encontro com novas gerações  (como bem colocou, certa vez, Bianca Angelucci, ao discutir a deslegitimação da fala dos mais novos). E assim, a vida segue nesse incansável gerúndio, com potência de renovação de esperanças e de traçados de novos projetos, sempre,  no particular e no coletivo.

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