Por Ana Lucia Gondim Bastos
“Covas sem corpos, são feridas abertas”, diz o pai de Carlotta ao marido que busca formas de colocar um ponto final, numa história de desaparecimento que dura mais de 20 anos. E, assim, sem rituais de despedida, ou uma história de fim para ser contada, o cineasta Ismael Vuillard (Mathieu Amalric) segue, buscando fios de meada, em seus roteiros cheios de mistério e desaparecimentos em “Os Fantasmas de Ismael” (Arnaud Desplechin, 2017), filme que abriu o 70 Festival de Cannes. No filme de Desplechin, os dois roteiros se entrelaçam: o idealizado pelo cineasta/ personagem, que traz uma aventura de suspense baseada na vida e desaparecimento do irmão, um diplomata cheio de mistérios, e o da vida desse mesmo cineasta, atormentado com o desaparecimento da jovem esposa (Marion Cotillard) e com montes de outros fios soltos da sua história. Apesar dos enroscos de novelos e fios de meada, no roteiro de Desplechin, que por vezes compromete o ritmo do filme e nos deixa, também, com uns fios soltos, contamos ali com bons elementos para a reflexão sobre perdas que não engendram uma narrativa de fim ou recomeço, infligindo castigo como o de Prometeu, que todo dia se renova e deixa ferida aberta e exposta. Mas, em não sendo Ismael um Prometeu acorrentado, atormentadamente ou não, tem a vida em curso, assim como seu filme, e uma hora começa a ter a vida afetiva tomando novos rumos, a partir do encontro com a astro física Sylvia (Charlotte Gainsbourg). Assim, alguns anos depois de ter declarado Charlotte oficialmente ausente (não morta), dois anos depois de conhecer Sylvia e durante a filmagem de seu filme sobre o misterioso diplomata, Ismael parece, finalmente, conformar-se, ou seja, parece estar de acordo com a configuração que a vida ganhou, com todas as perdas e covas sem corpos. Mas, é bem nesse momento Carlotta reaparece, mudando sentidos de tudo que parecia já mais calmo, apesar de não cicatrizado, porque mais do que a falta de corpo, o que faz da cova ferida aberta e a falta de história. Diz Isak Dinesen, “Todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou contamos uma história a seu respeito”, talvez seja isso que esteja implícito na memorável cena de Sylvia assistindo Carlotta dançar ao som de Bob Dylan, “It ain’t me you’re lookin’ for”. A música, escolhida a dedo, por ser de língua estrangeira ao filme e por servir tanto a uma quanto à outra, abre espaço para múltiplas interpretações e nos deixa claro que ninguém ali estava diante do que precisava encontrar, talvez todos tivessem que dar conta de tecer uma trama com fios soltos, mesmo! Inclusive o próprio Desplechin (com seus personagens que remetem a outras obras dele, e cheios de histórias mal contadas) e nós espectadores que nem sempre contamos com uma trama tão coesa e consistente. Mas, sem dúvida, vale a experiência e as quase duas horas de excelentes atuações e belas fotografias.