Peça/documentário: Estamira – Beira do Mundo

Por Ana Lucia Gondim Bastos

Num depósito de restos e descuidos, Marcos Prado conheceu a protagonista de seu premiado documentário, Estamira* (2005). Foi ela quem definiu assim, seu lugar de trabalho e morada, há 20 anos, o aterro sanitário Jardim Gramacho. É de lá que ganha voz para falar sobre um mundo (e uma vida) de desproteção, descuido, desconfiança e desesperança. Num discurso de restos de palavras e memórias, que remendam descuidos, Estamira nos leva a olhar para a Beira do Mundo, para Beira do Abismo, para a Beira da Loucura. Para tudo que o mundo produz e joga fora, para longe dos olhos, e de todos os outros sentidos, para produzir, e não precisar dar (se) conta, de mais e mais descuido que se mistura com mais e mais restos do que não serve mais ao uso. Estamira, à época das gravações do documentário, era uma senhora de 63 anos, mãe de três filhos, usuária do Centro de Assistência Psicossocial José Miller (Nova Iguaçu/RJ), com histórico de internações compulsórias, violência doméstica e abusos de todos os tipos e que, há vinte anos, tinha, em seu barraco no Jardim  Gramacho, à Beira do Mundo, um lugar para existir. Para existir e para falar sobre suas verdades, que ganharam alcance maior por conta de um daqueles felizes encontros que a vida, por vezes, favorece. O encontro com as sensíveis lentes do fotógrafo/diretor Marcos Prado, que a partir de um ensaio fotográfico, descobriu que Estamira tinha, mesmo, muito a dizer pro mundo. Foi, então, que desse encontro surgiram vários outros. Um desses outros encontros foi o da atriz carioca Dani Barros com a história da Estamira. Mergulhada nas lembranças de suas vivências junto à mãe, que, durante a vida, também apresentou  surtos psicóticos, Dani Barros (em parceria com Beatriz Sayad, que assina a direção da peça), recria as falas de Estamira e os recortes de Marcos Prado, numa construção dialógica com suas próprias experiências. O resultado é tocante: Dani, em premiada atuação**, dá voz à Estamira e às Estamiras, mas, também, aos seus familiares, à sua mãe e à  si própria. Da Beira do Mundo ao centro do palco, a loucura, a exclusão, a incompreensão, os descuidos e os restos. Comovente e desconcertante. Aplaudi de pé!

* https://www.youtube.com/watch?v=KFyYE9Cssuo (documentário na íntegra)
** Premiada pelo Shell carioca e pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA)

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