Por Ana Lucia Gondim Bastos
“Este é Ingmar Bergman. O cineasta mais icônico do mundo. O ano é o de 1957 e Bergman está com tudo! Está com 6 produções gigantescas estreando nesse ano. tem apenas 38 anos, mas já tem 6 filhos com 3 diferentes mulheres. Nesse ano ele faz a maior descoberta artística de sua vida: Para que seus filmes sejam ótimos, eles precisam ser sobre ele”. Assim começa o documentário de Jane Magnusson, lançado recentemente, no ano em que o cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-2007) completaria 100 anos. Magnusson escolhe o ano de 1957 como polo organizador de um extenso material contendo imagens de dezenas de making of, de cenas memoráveis das suas diversas obras, de entrevistas em vários momentos de sua vida e, também, de depoimentos de pessoas que trabalharam com o cineasta. A distância que mantinha da vida doméstica e do convívio com os filhos é tão enfatizada quanto a proximidade, inclusive física, que estabelecia com os atores enquanto os dirigia. A vasta utilização de plano fechado, plano que valoriza a intimidade e a expressão dos atores, já nos davam essa dica, em muitos dos seus filmes. Também o caráter auto biográfico de seus roteiros, é notório. Talvez daí o registro intimista dos filmes. A infância de filho caçula de um austero e rigoroso pastor luterano, o sofrimento em função das altíssimas auto exigências de desempenho, as frequentes trocas de investimentos afetivos, as culpas, as manias e as dificuldades de reparação, tudo isso compondo a complexidade dos personagens, desnudados em planos fechados. Talvez o interesse pelo teatro de marionetes na infância, tenha se mantido, ressignificado, na vida adulta. Então, à maneira de uma criança que conta história com seus bonecos, elaborando o impacto das novidades do mundo e a complexidade das relações humanas, no controle de cada ação, de cada cena, o adulto Ingmar, continua a precisar (e, quem sabe, preferir) seu papel de diretor de cena. Papel que, talvez, o deixe mais livre da submissão às rígidas exigências, inicialmente imposta pelos adultos e depois pelo superego do adulto. Seu personagem infantil Alexander, no premiado Fanny e Alexader (1982), assombrado por fantasmas e pela violência das figuras paternas, nos dá dicas disso. No documentário, no entanto, novas peças nos são oferecidas, evidenciando a não linearidade da construção dos arquivos de memória. Magnusson revela a importância das vivências do irmão mais velho, aquele que, realmente, apanhava do pai enquanto Ingmar assistia. Muitas das memórias da infância, eram projeções do que via seu irmão passar, nesse sentido, a personagem da caçula Fanny é bem relevante na tradução das vivências do diretor, diz um dos entrevistados: Enfim, Ingmar era mais Fanny do que Alexander. Impossível não parar, nesse momento, para uma releitura em “Bate-se numa criança” (Freud, 1919). Texto no qual Freud trabalha a relação da criança com a autoridade, enquanto assiste esta última espancar outra criança, com traseiro nu. Também, nesse texto, Freud esquematiza transformações nas fantasias infantis em relação ao espancamento de outra criança, em casos femininos (como o de Fanny). Tais transformações “falam” de ciúme, na medida em que “falam” de quem tem e de quem perde o amor paterno, de quem tem a atenção paterna e de entregas ao sadismo ou ao masoquismo. Então, vem para o centro da cena do complexo parental da criança (ou para o foco do enquadramento da câmera bergniana), outra rivalidade em relação ao amor paterno: o irmão.
Ainda sob o efeito de pensar no pequeno Bergman como Fanny, ocorreu-me que o icônico cineasta também estaria contido em outra memorável personagem feminina, a festejada concertista Charlote Andergast (ingrid Bergman), de “Sonata de Outono” (1978). Quando a filha Eva (Liv Ullmann), a convida a passar uns dias em sua companhia na casa paroquial onde vive com marido, o doce e compreensivo pastor VIcktor (salvar Bjork), Charlote é obrigada a lidar com seus sentimentos ambivalentes em relação às filhas, assim como, com a dificuldade de estabelecer intimidade com elas e de tê-las como espelho generoso, não conseguindo as olhar com admiração ou orgulho. Também, é obrigada a lidar com a culpa proveniente desse afastamento (geográfico, físico e emocional) e com as mágoas acumuladas, em função de tal afastamento. Eva, teria buscado a irmã, com graves deficiências físicas, para morar com ela e para ficar sob seus cuidados . A filha que Charlotte deixara numa clínica para seguir investindo em sua brilhante carreira. Nos poucos dias que Charlotte tolera a convivência íntima com as filhas, se dá um transbordamento de cobranças, culpas e depoimentos acerca do que vem sendo vivido por cada uma dessas mulheres. Nesse filme, no qual a figura masculina é observadora e cordata e cuja religiosidade abre espaço mais para dúvidas do que para certezas, mais uma vez Bergman trata das dores e marcas profundas ocasionadas nas relações entre pais e filhos, seja pelo convívio invasivo, seja pelo abandono, tão invasivo quanto. ”Eu não sei o que eu odiava mais, se era quando você viajava ou quando estava em casa”, diz Eva. Do mesmo modo que Charlotte confidencia ao seu produtor Paul: “me sinto tão deslocada. Sinto tanta falta de casa. Mas, quando chego em em casa, vejo que sinto falta de qualquer outra coisa”.
“O sentido da realidade é uma questão de talento. Muitas pessoas não têm talento, mas vivem mesmo assim” e, muitas vezes, ainda assim (ou por isso mesmo) criam verdadeiros legados à humanidade.