Filme – Perfectos Desconocidos

Por Ana Lucia Gondim Bastos

Há uns anos atrás, Eliane Brum, no artigo “A Boçalidade do Mal”*, advertia quanto a um fenômeno gerado desde que, nas redes sociais, protegidos do tête-à-tête e do olho no olho, passamos a dizer tudo o que se passa em nossas cabeças, sem filtros. Diz a autora:

Quebrou-se ali um pilar fundamental da convivência, um que Nelson Rodrigues alertava em uma de suas frases mais agudas: “Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava”. O que se passou foi que descobrimos não apenas o que cada um faz entre quatro paredes, mas também o que acontece entre as duas orelhas de cada um. Descobrimos o que cada um de fato pensa sem nenhuma mediação ou freio. 

À época, Brum discutia como esse tipo de experiência relacionada à internet disseminou ódio e transcendeu:  passou a impactar a vida cotidiana, a do contato físico. Como na internet, que com um apertar de um botão podemos bloquear ou deletar alguém, passamos a não conseguir conviver, coexistir em espaços públicos com quem não pense exatamente como nós. O outro, se não for um clone, só existe como inimigo.

O filme Perfectos Desconocidos (Alex de la Iglesia, 2018), remake de uma produção homônima italiana de Paolo Goivete, traz uma outra dimensão dessa experiência com a internet. Uma dimensão que ganhou força com advento, e popularização, dos smartphones. A internet ao alcance das mãos, e presente em cada passo, leva que não possamos admirar ou viver nada sem registrar e postar, jogar na rede, compartilhar com pessoas que estão distantes geograficamente. Em alguma medida, passamos a viver nossos próprios reality shows e, por outro lado, passamos a ser bombardeados com os reality shows das vidas de um número gigantesco de amigos virtuais. Também a facilidade e agilidade de comunicação, proporcionadas por softwares como o whatsapp, fazem com que tenhamos contato, ao mesmo tempo,  com uma quantidade de pessoas impensável, antes do seu advento. Então, nunca estamos sós e nunca estamos só no aqui e no agora, com as pessoas com as quais dividimos a realidade presencial. É como se tivéssemos um HD externo, que nos acompanha, atualizando tudo o que acontece e nos deixando em contato constante com todas as pessoas  e problemas que fazem parte das diversas esferas do nosso cotidiano. Uma realidade que, há muito pouco tempo, era tema de filme de ficção científica e, agora, precisamos lidar como algo já instituído  e que faz parte de nossas vidas, da forma como as vivemos e como a significamos. Por exemplo, como acontece no referido filme, um grupo de amigos antigos se reune para um jantar informal mas cada um leva, consigo, por supuesto, seu celular, através do qual um resto de vida inteira é gerenciada, independente da oportunidade.

São três casais amigos e um solteiro que anuncia estar namorando sério e que acaba por não levar a que seria nova participante do grupo, por ela se encontrar adoentada. Cada casal, assim como cada parte dele, vive vicissitudes próprias de um particular momento de vida: além do solteiro que iria apresentar a namorada, um casal mais jovem está prestes a casar, o outro com filhos pequenos parece num momento de desencontro  e os anfitriões  estão às voltas com as questões da filha adolescente que vive uma conflitiva com a mãe. Tudo dentro de uma certa razoabilidade de dores e delícias cotidianas, na vida de pessoas comuns. Contudo, quando é proposta a brincadeira de todos deixarem seus celulares no centro da mesa, desbloqueados para que compartilhassem tudo o que entrasse de mensagens ou ligações, durante o jantar, uma caixa de Pandora se abre e, talvez, nada possa voltar a ser como antes. Os sete personagens (Juana Acosta, Dafne Fernández, María Belén Rueda, Ernesto Alterio, Eduardo Noriega Gómez, Eduard Fernández e Perón Nieto em atuação dignas de nota) em situações de extrema tensão e extremo alivio, que se alternam, nos fazem, inevitavelmente, refletir sobre o que muda, quando as experiências que, um dia, ficaram limitadas ao registro na memória dos que viveram, ou, no máximo, em diários manuscritos (vulneráveis ao poder do fogo) passam a habitar, registradas, uma nuvem de informações que pode precipitar a qualquer momento, na realidade compartilhada.

*https://brasil.elpais.com/brasil/2015/03/02/opinion/1425304702_871738.html

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