Filme – Bird Box

Por Ana Lucia Gondim Bastos

Bird Box (Bier, 2018), filme original da Netflix, chega ao Brasil, num fim de ano marcado por grandes discussões acerca da luta por manutenção de privilégios de certas camadas da sociedade, encolhimento do espaço público de direitos  sociais, acirramento das manifestações de toda sorte de preconceitos e, enfim, parafraseando Titãs,   sobre, de um modo geral,  “quem quer manter a ordem ou quem quer criar desordem”. O ódio e o pavor que assolou a população nos últimos meses do ano passado, nos fez viver uma espécie de Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago*. Uma cegueira branca e contagiosa que isolava, pessoas por ela acometidas, em seus guetos e as fazia, em muitos casos, perder o senso de humanidade. Cada um preocupado em defender seus interesses particulares, como se não fizéssemos parte de uma coletivo maior. Longe de termos superado esse estado de loucura coletiva e longe do, diversas vezes prometido, retorno ao éden sonhado,  na virada do ano, talvez tenhamos nos identificado com o roteiro de Eric Heisserer (o mesmo de A Chegada, brilhantemente  dirigido por Villeneuve, 2016)**. Imagino que, para além de toda publicidade, seja por isso o frisson em torno do filme e o impacto em seus espectadores. Ao contrário do livro do Saramago, Bird Box trata de um estado de calamidade pública com suicídios em massa que começam a acontecer mundo afora, numa espécie de epidemia acometida pela visão, fazendo com que as pessoas escolham permanecer vendadas para que não se  desesperem. Pessoas comuns , ao se deixar penetrar pela visão do mundo caótico “lá de fora”, começam, repentinamente, a serem levadas ao suicídio. Nesse contexto, a trama versa sobre dois momentos que vão se alternando, no roteiro: o encontro de um grupo que se fecha e se protege do caos, numa casa de portas e janelas fechadas e, 5 anos depois desse encontro, a a tortuosa e temerosa aventura, pela sobrevivência, de uma dessas pessoas, Malorie (Sandra Bullock), para levar duas crianças para fora do cenário pós apocalíptico,  descendo rio abaixo, todos de olhos vendados, na esperança de chegada em lugar seguro. Malorie, uma artista plástica, recém divorciada, vivendo um final de gravidez, já buscava um certo isolamento pela percepção sombria das relações humanas e consequente insatisfação pela perspectiva de logo vir a ser mãe. O grupo de desconhecidos que se forma, em meio ao caos, com Malorie ainda grávida, é todo composto por pessoas, como ela, muito sensíveis à hostil realidade do mundo pré apocalíptico. Chama a atenção terem sido, exatamente, essas pessoas, todas em momentos de maior fragilidade e sensibilidade, as que conseguem, num primeiro momento, não serem contaminadas pelo impulso suicida e  terem força para buscar abrigo,  enquanto a epidemia chega, instaurando o caos. Talvez, justamente,por já serem pessoas que convivessem internamente com o mal estar gerado pelas agruras  e mazelas sociais do mundo  “lá de fora”, de forma um tanto mais consciente, crítica e, porque não dizer, mais sofrida. Contudo, também elas, passam a só poder enfrentar o mundo “lá fora” com olhos vendados, sob o risco do impulso imediato à morte. Além desse risco iminente, outros grupos de  sobreviventes vagam imunes ao desespero causado com a visão do “lá fora”, ameaçando aos que necessitam das vendas para sobreviver. No angustiado grupo dos vendados, a vida pulsa, crianças nascem, conflitos se dão, estratégias de sobrevivência são estabelecidas, decepções acontecem e amores brotam. Malorie e Tom (o cativante personagem de Trevante Rodhes), nesse grupo,  fazem contrapontos entre a praticidade que o ser humano precisa para sobreviver e a ampliação dos espaços de sonho e poesia para construção de narrativas e estabelecimento de esperança, também, necessária à sobrevivência humana. E, por aí vai o filme, com muita ação e suspense, em minha opinião, por vezes “pesando a mão” no suspense, beirando ao terror de segunda categoria. Não fosse por isso e pelo final cuja adaptação empobrece, sobremaneira, a saída dada à trama, oferecida pelo livro homônimo, no qual o filme se baseou ( Josh Malerman, 2014), consideraria uma boa opção para discussões bem atuais. Discussões sobre um tempo no qual parecemos nos sentir mais seguros e tranquilos em gaiolas que restringem nossos voos.

*SARAMAGO, J. A … Ensaio sobre a cegueira. 19a. ed. São Paulo: Cia. das Letras,. 2001.

**https://tecendoatrama.com

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