Por Ana Lucia Gondim Bastos
Os nomes de Viggo Mortensen e Mahershala Ali, logo nos remetem às brilhantes atuações que lhes renderam indicações na premiação do Oscar de 2016: Viggo, com seu inesquecível Ben, de Capitão Fantástico (Ross, 2016)* e Mahershala Ali, com seu controverso Juan, do filme, vencedor daquele ano, Moonlight, sob a luz do luar (Jenkins, 2016)**. Na premiação desse ano, voltam a encabeçar listas de favoritos aos prêmios de melhor ator e melhor ator coadjuvante, agora contracenando no, também concorrente a melhor filme, Green Book, o guia (Farrell, 2018). O título faz referência a um guia direcionado a motoristas negros em viagens pelo sul dos Estados Unidos, no início da década de 60. Um guia com dicas de onde comer, se hospedar ou se comportar, em lugares nos quais a segregação racial era ainda mais explícita e naturalizada, naquele momento histórico. O caráter desconcertante do roteiro, baseado em fatos reais, então, já se dá de cara, já que o motorista que recebe tal guia, Tony Lip (Viggo Mortensen), é branco e o recebe para ajudar no seu trabalho de condutor e segurança do prestigiado pianista Don Shirley (Mahershala Ali), em turnê, de dois meses, pelos estados do sul estadunidense. Tony é um sujeito sem muita crítica acerca do mundo e leva a vida de forma bastante pragmática, rude e arrogante. Desempregado, vê como oportunidade, trabalhar para Don Shirley por dois meses, em função da boa remuneração, apesar da distância do numeroso e unido núcleo familiar e da desconfiança no trabalho e patrão sui generis, que aparecera. Don Shirley, por outro lado, se apresenta como um homem de fino trato, delicado e preocupado com os detalhes, no cotidiano pessoal e profissional, que percebe precisar de uma pessoa como Tony, na empreitada que assume nessa turnê pelo sul racista e conservador. O encontro dos dois numa convivência, obrigatoriamente, intima e contínua, como não dá para ser diferente, faz com que transformações aconteçam. Transformações de visão de mundo, de olhar para o outro e de olhar para si próprio. Numa, das várias, situação constrangedora que Don Shirley é obrigado a passar nos lugares que o recebem festivamente, como músico, mas nunca confundido com os clientes, Tony pergunta a um dos músicos brancos que tocam com ele, acerca do porquê se sujeitar a tocar para aquelas pessoas, o porquê de aceitar aquele tipo de trabalho e, recebe como reposta: “é preciso coragem para transformar corações”. E acho que essa passagem traduz bem a tônica do filme, um filme sobre a coragem de se deixar tocar pelo outro, de questionar o sempre lá/o sempre assim, das coisas do mundo e de percebermos nossa potência transformadora de realidades, encarando as impotências e desilusões no/com o mundo que temos e construímos, quebrando , então, com o domínio das fantasias onipotentes da infância. Pois, só assim, usando as palavras de Maria Rita Kehl (2000:494)***, “uma vez aceitas as determinações fundamentais da condição humana, uma vez rompidos com os domínios da fantasia, se abrem para nós as possibilidades infinitas do domínio das paixões: nem a onipotência, nem a submissão, mas a conquista do território humano. O mais vasto território onde o desejo pode se mover”
*https://tecendoatrama.com/2017/01/20/filme-capitao-fantastico/
**https://tecendoatrama.com/2017/03/04/filme-moonlight-sob-a-luz-do-luar/
*** Kehl, MR “A Psicanálise e o Dominio das Paixões” In Cardoso, Sergio (et al.) Os Sentidos da Paixão (1987)