Por Ana Lucia Gondim Bastos
Em 1667, Juana Inês de Asbaje, depois de tentar convencer a mãe a autoriza-la a se passar por homem para ter o direito de “estudar na universidade os mistérios da vida”, se esquivou do destino das mulheres da corte, condenadas ao quarto de bordar e aos maridos que as escolhessem, entregando-se ao monastério e se tornando Juana Inês de la Cruz. Conta-nos Galeano* que, na serena luz do claustro e na solidão de sua cela, teria ido buscar o que não pôde encontrar lá fora. A fogueira da Inquisição da Igreja Católica, não a queimou, como fez com tantas mulheres cujos saberes eram tido como ameaças à ordem vigente, mas o desejo por conhecimento e os questionamentos que ardiam em seu peito não ficaram impunes. Juana Ines de la Cruz passou a vida sendo castigada por ser uma mulher desejante.
O filme Retrato de uma mulher em Chamas (2019), de Céline Sciamma (a mesma diretora de Tomboy, 2011**), se passa anos mais tarde, na França de 1770, e traz toda a ardência dos afetos desejantes de mulheres que buscam alternativas aos rígidos e acachapantes ditames do patriarcado. Héloïse (Adèle Haenel) é uma jovem que volta para casa depois do suicídio da irmã e do impedimento materno de seguir o caminho de busca pelo claustro para fugir da inevitabilidade do casamento arranjado. Um retrato de Heloïse deveria ser pintado para ser enviado ao pretendente, mas ela se recusava a posar para seja qual for o pintor. Como estratégia, a mãe contrata uma pintora, Marianne (Noémie Merlant), que se faria passar por dama de companhia para observa-la durante o dia e pinta-la na calada da noite.
O primor da direção de arte faz de cada cena do filme uma pintura e, a relação entre pintora, a modelo e uma terceira personagem feminina que transita nesse território especular, que vai se estabelecendo no decorrer do roteiro, a empregada (Luana Bajrami), vai atribuindo texturas, colorido e significados aos quadros que vão se desenhando, nas cenas e no interior delas. Apesar de não citar diretamente a inquisição e seus castigos, o filme traz com força assuntos de mulheres tão vigiados e castigados por tal tribunal eclesiástico que teve vigência até o século XVIII. “As principais acusações (da inquisição) eram referentes às práticas sexuais e reprodutivas: usos de plantas como contraceptivas, para interromper a gestação, para aliviar as dores do parto e como afrodisíacas. Os desejos e prazeres sexuais das mulheres eram considerados como demoníacos.”*** E é sobre tudo isso que Sciamma trata com muita delicadeza, fazendo belos retratos de mulheres e das chamas produzidas, em sopros de liberdade, pelo desejo e pela potência dos encontros solidários.
*Galeano, Eduardo 1667, Cidade do México: Juana aos dezesseis In Amores. L&PM, 2019
Juana Inés, série Netflix
**https://tecendoatrama.com/2015/06/10/tomboy/
***https://psibr.com.br/colunas/sexualidade-e-genero/marcela-pastana/quem-eram-as-mulheres-queimadas-nas-fogueiras-da-inquisicao
