Por Ana Lucia Gondim Bastos
“Acredito que aqueles que produzem filmes de terror estão fazendo hoje tramas mais explicitamente políticas. O gênero sempre carregou mensagens, e isso porque o cinema de terror é, em seu cerne, sobre aquilo que nos assusta, o que é visto nas nossas sociedades”, diz a pesquisadora Dawn Keetley, citada por Leonardo Sanchez em seu texto sobre o filme “O Poço” (Galder Gaztelu-Urrutia, 2020)*. Na reportagem, escrita para Folha de São Paulo, Sanchez conta do especial interesse de Urrutia pelo gênero de terror no cinema e traz uma lista de filmes que marcaram épocas sombrias e seus medos subjacentes (medo do estrangeiro e os perigos da xenofobia pós o 11 de setembro; os filmes de psicopatas que matam adolescentes sexualmente libertos, em tempos de governos mais conservadores, como de Regan e assim por diante). Sabemos, também, por outro lado, que o “sobre o que nos assusta” do filme de terror reside, não só nas sociedades, mas, dentro de cada um nós. É o infamiliar, o inquietante, discutido por Freud em 1919 (um ano antes de desenvolver a noção de Pulsão de Morte, em “Além do Princío do Fazer”). Nesse referido texto, de 1919**, Freud fala do desconforto emocional que acomete nossos processos de subjetivação quando uma instabilidade na relação entre o que é familiar e o que é estranho a nós, se instaura. Quando, certa indeterminação das obviedades da realidade compartilhada, coloca em xeque, o que acreditamos sobre nós mesmos e sobre a realidade que nos cerca. Nesse aspecto, zumbis, objetos inanimados que ganham vida (como brinquedos assassinos) e outros seres sinistros poderiam traduzir experiências da infância , aspectos de um narcisismo não superado, do que deveria ter ficado no campo do recalcado, do esquecido e abandonado, em função das imposições da vida em sociedade. E quando a vida em sociedade passa a ser o “sobre o que nos assusta” ou a maior ameaça à nossa existência humana (coletiva ou individual)? E quando os laços sociais não são motivos suficientemente fortes para que abandonemos nosso narcisismo? Será que é essa inversão*** que está tornando as tramas de terror da ficção, cada vez mais explicitamente socio-políticas? Fiquei me perguntando.
Bem, mas, vamos ao Poço (ou ao fundo dele). Um filme que se passa numa clausura, lançado na mais popular das plataforma de streaming da atualidade, em tempos de isolamento social em função da pandemia de COVID 19, cujos textos escritos sobre ele, curiosamente, muitas vezes, versa sobre explicações sobre os possíveis significados acerca do final do filme. Mais do que as possíveis metáforas do final do filme, me intrigou porque desse interesse de saber sobre as verdades do diretor, sobre o final escolhido. Um filme que trata de um sistema, supostamente, de reabilitação social, estruturado verticalmente num formato de poço, com buraco no meio, onde se encaixa, momentaneamente, uma plataforma, na qual é montada uma refeição digna de banquetes reais, que vai descendo aos vários níveis do poço, com as sobras dos níveis superiores. A ideia da “administração” (que parece uma referência ao mundo distópico de Orwell), seria a de desenvolver uma solidariedade espontânea (quem sabe resgatar a virtude necessária à democracia, descrita por Montesquieu?)****.
Goreng (Iván Massague) é o protagonista que parece ter entrado por vontade própria, levando o Don Quixote de Cervantes, como seu acompanhante escolhido. Passa por três ou quatro níveis e diferentes acompanhantes de platôs, através dos quais, vai entendendo mecanismos do poço e do funcionamento de uma estrutura na qual a empatia e a noção de distribuição de recursos poderia salvar a vida dos que estariam em níveis inferiores. Passa a viver, na carne, então, as consequências da fome, da falta de empatia e do medo, que transforma bons companheiros de clausura, em assassinos. Passa, também, a fazer estratégias de sobrevivência, que o leva da esperança no colaborativismo à radicalidade da violência. E o fim… acho importante que entendam como puderem/quiserem. Pois é um filme sobre obviedades (como diz o primeiro companheiro de Goreng), mas, nem tanto.
*https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/04/filme-o-poco-reflete-era-do-coronavirus-e-mostra-que-o-terror-sempre-foi-politico.shtml
** Freud, S. O inquietante (1919) In Vol. 14 das obras Completas, ed, Imago
***Bauman, Z. O Mal Estar na Pós Modernidade. Rio de Janeiro: ed. Jorge Zahar, 1998
****Montesquieu. Do Espírito das Leis (1748)
