Por Ana Lucia Gondim Bastos
O Brasil sofre de ignorância acerca da própria história. Somos um povo de memória apagada, de narrativas romantizadas, passados deslembrados * e santos do pau oco que viraram heróis nacionais (para utilizar uma expressão popular proveniente das formas de contrabando de ouro no Brasil colonial). Nesse sentido, o diretor pernambucano Marcelo Gomes, com uma mui respeitável filmografia que inclui “Cinema, aspirinas e urubus”(2005) e “Viajo porque preciso e volto porque te amo”(2009)**, presenteia os professores de história com uma pérola do cinema nacional. “Joaquim” (2017), é um filme que retrata a vida de Tiradentes, em sua época de dentista e alferes, até sua passagem à ativista político, num caminho sem tão nobres motivações. Apresenta-nos um “mártir da revolução”, sem revolução (sim , a inconfidência mineira, nunca passou de uma conspiração), conta-nos do mais pobre dos inconfidentes como aquele que, não por acaso, foi o único a ser decaptado, o único que acreditava e clamava por insurreição e aquele que passou a fazer trabalho de base como os pobres mineiros explorados. Mais que isso, mostra-nos um Brasil sendo construído sustentado pela desigualdade social e pela escravidão. Numa das cenas de maior impacto do filme, enquanto os três tropeiros, distintos pela hierarquia determinada por suas origens e relações com a coroa portuguesa, discutem o que fariam com o ouro, que porventura encontrassem, o índio e o negro escravizados, que também participavam da tropa, fazem encontrar suas culturas, através de cantos e danças próprias. Por essas e por outras, o filme se faz digno de nota no sentido de não apresentar essas populações apenas em personagens subjugados, da nossa história. Mostram-as com todo seu potencial de resistência e como grandes influenciadores de nossa cultura brasileira (como na cena citada). Fala de quilombos e de mulheres negras insurgentes e fala de caminhos de conscientização de subjugados. Um filme que, diferentemente de muitos outros produzidos sobre nossa história , não nos levam a perceber a imagem do colonizador como espelho generoso para nos contemplar. Tampouco nos leva ao costumeiro rechaço às nossas origens indígenas e africanas. Um bom começo de conversa para sair do registro de oprimidos cujo único sonho é se tornar opressor***.
*https://tecendoatrama.com/2019/07/10/filme-deslembro/
**https://tecendoatrama.com/2018/06/01/filme-viajo-porque-preciso-volto-porque-te-amo/
*** Freire, Paulo Educação como Prática da Liberdade. Editora Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1986
