Filme – Inocência Roubada (da série: interlocuções na quarentena)

Por Adriana Domingues, Ana Lucia Gondim Bastos e Jaquelina Imbrizi

O filme começa com Odette (Andréa Bescond, a protagonista que também assina o roteiro e a direção) abrindo uma fresta para contar como lhe foi roubada a infância. Faz questão de ser chamada pelo nome, o nome do Cisne branco do balé Lago dos Cisnes, o cisne agonizante. Fala com a psicoterapeuta como se fosse aquela a última cartada para não sucumbir à dor da  porta fechada, quando, no auge dos sonhos infantis de talentosa menininha que queria ser bailarina, passa a ser abusada constantemente por um amigo “acima de qualquer suspeita” dos pais, ao atravessarem uma porta cor de rosa. A história autobiográfica da bailarina/atriz/roteirista e diretora do filme, recebeu primeiro uma versão para o teatro, dirigida por Eric Metayér, que, posteriormente, também assinou a direção de Inocência Roubada (2019) para o cinema. A relação dela com a própria história, com seu corpo e com sua voz, inicialmente, parece só conseguir se dar, de forma mais efetiva, via dança. Quando garotinha, era no balé que podia receber um olhar de admiração e cuidado para com esse corpo que se movia com leveza; únicas cenas de voo livre, boas lembranças sem o perigo do agressor, sempre presente no contexto doméstico. Na vida adulta, o corpo desconjuntado pelo excesso traumático do abuso sexual ganha possibilidade de expressão, mas não de elaboração. É no processo de análise que as cenas vão sendo nomeadas, por exemplo, quando relata uma das cenas de abuso e pergunta o porquê do agressor seguir em frente se estava claro que ela não gostava da situação, e a terapeuta nomeia a situação como estupro. Assim, o cisne agonizante vai ganhando fôlego para resistir e encarar as novas interpretações de sua narrativa (omissão da mãe, negação do pai, inocência e impotência  da criança frente à violência vivida). A seu tempo, vai conseguindo articular seus movimentos à voz que vai retomando; percebe que, ao se calar e continuar convivendo com seus pais e o abusador como se nada tivesse acontecido, estaria voltando ao lugar da menininha indefesa abusada. Estava deixando tudo acontecer como sempre, na casa, nas relações, no pacto social que defende homens brancos e ricos de todo crime que possam vir a cometer. A história de todos ali daquele cenário estava com uma peça faltando, uma lacuna que só ela podia trazer à tona. Mas, antes era preciso que tivesse sua história legitimada e sua dor acolhida. A narrativa do filme acontece como num sonho (ou numa sessão de análise, ou ainda, no palco ou num roteiro de cinema) com as associações livres possibilitando que as leis da física dessem  lugar às leis da condensação e do deslocamento, com personagens e tempos cronológicos se misturando, em meio a muita dança no vazio de um fundo infinito.

De primeiro momento, a narrativa fílmica não é confortável para o teleespectador, as cenas das coreografias e a encenação da dança cortam/atravessam a narrativa linear; imagens fantásticas entrecortam o que seriam as imagens reais na película. O filme é construído em flashback nas cenas que intercalam presente, futuro e passado. Muitas vezes, o que ligam as cenas de momentos históricos tão díspares são as coreografias. Quando o/a telespectador/a se acostuma com o interjogo real/fantasia, infância/adolescência/idade adulta, há um desconforto maior que é o da função da mãe no filme, incapaz de ouvir e perceber a criança, mesmo quando a criança não diz nada.

Uma mãe que desmente o sofrimento e as angústias da filha até na idade adulta; quando as palavras corretas são utilizadas para denominar o fato: estupro – violência sexual cometida por um amigo da família -, há indiferença e insensibilidade da mãe. Como se toda a violência sofrida pela menina fosse natural e, assim, seria mais fácil culpar a filha por falar do que responsabilizar o amigo pela violência infringida a uma criança. Nem precisamos retomar as estatísticas brasileiras para reafirmar este evento singular no filme. A maioria das violências sexuais contra crianças são cometidas por alguém muito próximo, seja um membro da família, um vizinho ou um amigo que convive com os  pais da criança, como é do que se trata no filme. 

Aviso ao leitor: a partir daqui, o texto contém spoilers.

Mas, o inusitado na película é que, a despeito de que a protagonista só é capaz de elaborar o acontecimento traumático quando, por meio do processo terapêutico, ela consegue levar o agressor ao tribunal para que ele seja responsabilizado por seus atos.

Como elaborar um trauma? Como elaborar a confusão de línguas entre o adulto e a criança? Como aponta Ferenczi*, a confusão entre a linguagem da paixão e a linguagem do lúdico?

Pois bem, nossa protagonista, antes mesmo de encontrar um processo terapêutico já tinha encontrado a linguagem lúdica para se exprimir, ela já fazia parte de um grupo de dança. Em sua infância, encontrou uma professora bem fora dos padrões do que se espera de uma professora de dança.

E, é assim, bem fora dos padrões do que se espera de uma protagonista é que emerge a nossa Odette. Fora dos padrões, também, é o seu modo de dançar, contemporâneo, e que se aproxima do street dance, com roupas de ginástica, bem andrógina vai se configurando a nossa bailarina/dançarina. Não é a do corpo talhado das bailarinas do balé clássico. É o corpo musculoso talhado para suportar as agruras da vida. É a partir deste modo de dançar, mais emocional do que técnico que os/as telespectadores/as vão se apropriando do fato que a dança é seu modo de expressão, de colocar no seu próprio corpo modos de expressar a violência sofrida e a angústia produzida. 

São coreografias da raiva!!!

O título original da peça teatral, “Les Chatouilles – Ou la danse de la colère” (As cócegas – Ou a dança da raiva), expressa bem de que forma sua dança exterioriza o uso e abuso de seu corpo. O jogo de cócegas era “a senha” para atravessar a porta cor de rosa e ter seu corpo invadido pelo abusador. A dança de rua era “a chave” para que os afetos pudessem passar e encontrar sua própria linguagem de expressão, para que ela pudesse encontrar outros corpos para os quais pudesse se expor. O que pode este corpo? Para Deleuze e Guattari **(1996), o corpo é modulado pelos afetos que pedem passagem, como um plano de inscrição dos percursos e das memórias escritas nele; trata-se de um corpo em que as intensidades passam e circulam. Intensidades produzidas pela memória dos acontecimentos da infância atravessam o corpo de Odette e inventam uma expressão. Sua dança é uma narrativa construída a partir deste campo afetivo, seus movimentos são enunciados que narram os afetos que a impulsionam. A raiva, silenciada pelo pacto social e familiar, era o que dava sustentação a seu corpo e direcionava sua coreografia na dança e na vida. 

 Como superar um trauma? O filme nos apresenta a arte, no caso a dança, como um modo de elaboração que não perpetua o ressentimento e nem a violência, mas associada a um processo terapêutico pode levar à possibilidade de conquistar uma vida com um quinhão de felicidade, liberdade ou autonomia.

Do ponto de vista erótico, a única estratégia da protagonista vivenciar sua sexualidade é amar todos e todas ao mesmo tempo, não se encaixa nos padrões heteronormativos da sociedade e em uma cena de festa com muita dança, vemos nossa protagonista “ficando” ao mesmo tempo com homens e mulheres, sem se fixar numa relação, tudo ao mesmo tempo e agora, num exercício que parece de uma descarga autoerótica , do que de relação com objeto. Há um excesso presente também no seu modo de experimentar os prazeres sexuais que demonstra a angústia que a acompanha por ter sido iniciada tão cedo na linguagem da paixão, sem possibilidade de exercitar a sua linguagem lúdica (Ferenczi). Aliás, o seu violador em convites para as cenas de violência sexual, sempre se utilizava de linguagens do brincar infantil, convidando Odette para brincar de bonecas, misturando as tintas de tempos e possibilidades libidinais.

O sexo, associado ao amor e à relação com um outro, com entrega e confiança,  só será possível depois que ela consegue levar o agressor à julgamento, quando sente legitimada sua dor e tem o reconhecimento da violência experienciada, seu lugar de vítima do abuso e não cúmplice . Um belo libelo para nós este filme francês…preparar os adultos para prestar mais atenção nas crianças, preparar os pais para não negar realidades tão duras, mas que só podem ser transformadas se não precisarmos recusar o contato com a crueldade humana, antes de defender as nossas crianças. A cena na qual o  pai de Odete pede perdão à ela e chora é uma das mais bonitas da cinemagrafia contemporânea. E claro, as cenas nas quais Odete coreografa sua própria angústia, assim como expressa suas possibilidades de simbolização.

Odette, sabia bem o que Pina Bausch queria dizer com sua célebre frase, “Dance, dance, otherwise we are lost”.

**Deleuze, G. e Guattari, F. (1996). 28 de Novembro de 1947 – Como criar para si um corpo sem órgãos. In: __________ Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia, v. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34 (pp. 9-29).

*Ferenczi, S. (1992). Confusão de língua entre os adultos e a criança. (A. Cabral, Trad.). In Psicanálise IV (pp. 97- 106). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1933).

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