Filme – Party Girl ou a garota que gosta de dançar sozinha (série : interlocuções na quarentena)

Por Adriana Domingues, Ana Lucia Gondim Bastos e Jaquelina Imbrizi

Reduzidos a um único tempo verbal, o pretérito, com suspeito presente e um futuro que ninguém quer. (Eliane Brum)

Quanto custa a cada uma de nós, mulheres, escolher um caminho singular, bem fora da curva dos padrões impostos pela sociedade?  Quase sempre, os padrões impostos estão relacionados a alcançar os ideais da família feliz dos comerciais de margarina, garantindo a convivência familiar, assim como as belas e fartas refeições, nos almoços e jantares com os parentes. Da mãe dadivosa à avó cuidadora e benevolente, preocupada com os netos, o espaço da casa e do psiquismo feminino deve todo ser ocupado à serviço do bem-estar e funcionamento familiar. Neste modelo, as mulheres se aproximam da imagem da santa religiosa, com todas as energias voltadas a outrem, alheias à suas satisfações particulares. Os prazeres sexuais, fora do modelo da mulher casta, as aproximam da imagem da puta, da vida cheia de luxúria e lascívia. O meio termo entre os dois extremos é a arte das possibilidades. À mulher, também, é exigida a beleza e o frescor da juventude, a fim de se manter atraente aos olhos masculinos, ser amada antes de amar. O processo de envelhecimento traz desafios para algumas mulheres que se referem à perda paulatina da capacidade de atrair tais olhares de admiração e seu poder de sedução é colocado em xeque. Claro, estes desafios são agravados quando nos referimos às mulheres que escolheram um caminho fora dos padrões de felicidade, socialmente impostos; à elas não é dado o direito de contar como é que faz para ser feliz fora do prescrito ao nascer “uma princesa”. Assim, muitas vezes, o envelhecimento é percebido como sinônimo de sofrimento, solidão e sentimento de  abandono pelos entes queridos, quanto mais a mulher não cumpriu, na vida adulta, o roteiro da esposa, mãe e avó que atende os filhos adultos e os cuidados com os netos. Mas, quais outras narrativas sobre as formas de viver o envelhecimento feminino podemos dar visibilidade?

No filme Party Girl (2014), Samuel Theis conta com a parceria de outras duas diretoras, Claire Burger e Marie Amachoukel, para contar a história da protagonista Angélique, papel oferecido à mãe do diretor, Sonia Theis, com a qual contracena fazendo o papel do filho mais velho  (qualquer semelhança com a vida real, no caso, não terá sido mera coincidência).  Angélique é uma mulher por volta dos 60 anos que insiste sobre a possibilidade de inventar sua própria vida e deixa o telespectador e cinéfilo estupefactos. Desta vez,  não vamos dar spoiler (rs) sobre o final da trama, somente sobre a música final que dá título ao filme, da cantora e compositora canadense Michelle Gurevich. Seu estilo musical dialoga com o indie rock em seu subgênero slowcore, um misto entre o moderno e tradicional que se articula com sua ascendência russa. A canção e seu ritmo parecem definir bastante a protagonista Angélique, cujo tom de voz talvez a aproxime da tessitura vocal angelical, mas cujo corpo revela as muitas experiências sitiadas entre ser uma mulher livre e à frente de seu tempo e as imposições tradicionais do que se espera de uma dançarina sexagenária.

Muito já se falou disso, dos valores tradicionais e modernos impostos às mulheres, apesar de os defensores da Tradição, Família e Propriedade (TFP) estarem sempre dispostos a voltarem à tona com o discurso da moralidade, que constrange o movimento dos corpos e suas possibilidades de expressão. Sobre a plasticidade e multiplicidade de caminhos para a libido, resgatamos as ideias de Freud em suas reflexões que o levaram à teoria das pulsões. Em “O mal-estar na civilização” (1930), afirma que cada um de nós pode escolher um caminho singular e inventivo para a felicidade, mesmo sabendo que ela não será plena e, neste quesito, não há padrões a serem seguidos, tampouco, garantias. Para se viver em sociedade, assevera o autor, trocamos uma parcela de felicidade por uma parcela de segurança. Contudo, com  isso, não quer dizer que devamos abandonar a felicidade em prol da segurança, como acontece a muitas de nós mulheres, oprimidas pelos estreitos padrões sociais que, em alguns casos, estão atrelados também à sobrevivência econômica. Em 1930, Reich (1974) já indicava a importância do direito ao aborto e da crítica ao casamento monogâmico, sugerindo formas inventivas de amar e de convivência entre sujeitos. Sem falar em todas as lutas dos movimentos feministas que questionam este lugar apassivado das mulheres nas ficções e, em alguns casos, na vida real, sempre se fazendo de objeto para um outro. Ou, como nos diz Simone de Beauvoir (2019), a mulher sendo criada e sendo transpassada por um processo de socialização como o outro do homem. O fato é que essas lutas ainda seguem atuais na sociedade da segunda década do século XXI. A história como síntese de avanços e retrocessos (Adorno, 1998) recai sobre nossas mentes, e o filme aqui em foco parece repassá-los sem subterfúgios: os ideais do amor romântico, a festa de casamento, a noiva se não virgem, aquela que se resguarda antes do casamento (mesmo tendo trabalhado dentro de um cabaré durante os últimos anos de sua vida). 

O filme parece remeter à película Noites de Cabíria (1957), de Fellini, de modo às avessas. A personagem Maria Cabíria Cecarelli é a prostituta de bom coração que busca o amor romântico em todos os clientes que a procuram para outros objetivos: o prazer com  sexo rápido e sem compromisso. Há sofrimento, para Cabíria, quando a realidade se impõe e gera incômodo e desapontamento no telespectador desta obra-prima de Fellini. Em Party Girl, a protagonista Angélique vê todos os seus clientes sumirem do cabaré, por não ter mais os atrativos da juventude, por beber excessivamente e por gostar de dançar sozinha. Um dos seus clientes se diz apaixonado por ela e a pede em casamento. O que fazer? A nossa dançarina solitária se deixa envolver por este ato que é tudo o que a sociedade considera felicidade: o encontro com um homem bom e que a ame, o encontro com um padrão de vida socioeconômico melhor, de um quartinho de hotel próximo ou no mesmo prédio do cabaré, para uma casa com dois quartos que ela poderia varrer durante todo o dia e receber os filhos, até então, distanciados dela em função da sua vida noturna. Como não nos lembrar da garantia de final feliz em Pretty Woman (Marshall, 1990) com Julia Roberts e Richard Gere, o galã hollywoodiano e os protagonistas dentro dos padrões estéticos de beleza, de juventude e de heteronormatividade?

Para as amigas, Angélique tirou a sorte grande; para os filhos, do mesmo modo, além de  boa alternativa de se livrarem de um fardo que um dia lhes daria muito trabalho, um dia “sobraria para eles” (como a filha chega a comentar com os irmãos na noite anterior ao casamento). O questionamento acerca da felicidade que poderia proporcionar esse casamento parece fora de qualquer possibilidade de reflexão. Se ela está apaixonada pelo noivo e futuro marido que se anuncia, parece a todos, inclusive a ela até certo momento, de importância menor. Sabe-se que ela é mulher de muitos anéis, acumulados vida afora, fica difícil, então, para sua neta, achar o anel de noivado em meio a tantos outros maiores e coloridos. Uma metáfora interessante de uma mulher em aliança com vários outros prazeres da vida. Há afetos ambivalentes também, pois, ao mesmo tempo em que a nossa protagonista não é a mocinha virgem e passiva dos contos de fada, ao se submeter aos ideais e padrões impostos como único caminho para a felicidade do sujeito, a poderosa, maquiada, com bijuterias excessivas e mulher de sexualidade livre e aparente, sucumbe e é conduzida por grande parte do roteiro, na  direção e cenário, a acreditar nos desejos dos outros e não nos seus. Pois, o desejo de nossa protagonista, ao que nos parece, não cabe nos rótulos do que pode desejar uma mulher, mais ainda, do que pode desejar uma mulher que envelhece. Angelique parece continuar jovem mesmo que dentro de um corpinho de sessenta anos. Antes do casamento, pensa em mudar-se para Paris com o filho mais velho, com o qual mais se identifica e mais se sente compreendida. Ela tem a  jovialidade existencial e simbólica.

“Jovialidade é um nome que inscreve uma condição divina — vem de Júpiter — no latim jovis. Outro nome para alegria, para a aceitação da vida tal qual ela nos aparece, como uma nuance da morte. Na alegria da jovialidade moço e velho se reencontram, trocam e podem sentir a mesma saudade que em vida se sente da vida, de partes nossas, saudades das partes corporais, de partes espirituais, que morrem ao longo da existência” (Vilhena, Novaes e Rosa, 2014).

A história de Angélique produz outras narrativas acerca da sexualidade, do corpo, da família e do trabalho em pleno processo de envelhecimento. Cabe-nos o desafio de fugir de tentativas interpretativas de dar sentido às contradições e dúvidas vividas pela personagem; deslocar a análise do que estaria escondido atrás da linguagem descontraída e livre da animada personagem, desconfiando de sua alegria e sexualidade e submetendo-a a um olhar moralizante. O filme nos convida a despertar a sensibilidade e os sentimentos para as inúmeras possibilidades de se vivenciar a velhice e construir narrativas sobre a própria história que precisa ser contada. Por intermédio de sua narrativa, contraria as regulações sociais que restringem a sexualidade e o corpo das mulheres. A liberdade é concebida como possibilidade de vida, ato de coragem e resistência. É a sua autonomia e a liberdade de seu desejo que está em jogo o tempo todo.

A nossa protagonista flerta com a morte ao levar uma vida noturna de excessos e em quase todas as cenas ela tem um cigarro nas mãos e cambaleia alcoolizada no final de cada noite passada no cabaré,  sempre sendo levada ao quarto apoiada pelo segurança do estabelecimento. Contudo, está longe de parecer fora do páreo para a luta diária que não aceita trocar um mínimo de segurança pelo exercício diário de sua liberdade. Às telespectadoras fica um amargo na boca e a sensação de que ainda é preciso avançar muito para conquistar um lugar singular e ao sol para as mulheres na sociedade contemporânea. Continuemos com a liberdade de dançar com nossa solitude assim, como e quando nos convier.

Referências Bibliográficas:

ADORNO, Theodor W. Prismas: crítica cultural e sociedade. Trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo: Editora Ática, 1998.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo.Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2019.

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: SOUZA, P. C. de (Org.).

Obras Completas . São Paulo: Companhia das Letras, 2010c. v. 18, p. 13-122.

REICH, Wilhelm. Psicologia de Massas do Fascismo. Porto: Publicações Escorpião, 1974.

VILHENA, Junia de; NOVAES, Joana de Vilhena; ROSA, Carlos Mendes. A sombra de um corpo que se anuncia: corpo, imagem e envelhecimento. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, 17(2), 251-264, jun. 2014.

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