Por Ana Lucia Gondim Bastos e Jaquelina Imbrizi
Vivemos em um mundo cão e, isso, ninguém pode negar! Um mundo repleto de padrões de normalidade e de sucesso que dão margem a preconceitos e violências de toda ordem para com aqueles que desses padrões se afastam. Aos que vivem em situação de vulnerabilidade social ou estão mais sujeitos às suscetibilidades de afecções orgânicas, os ataques às suas subjetividades são ainda mais frequentemente.
Mas, como será que cada um de nós enxerga o mundo “através” do vidro de uma janela? No documentário “Janelas da Alma”(2004), João Jardim e Walter Carvalho, tratam a questão do olhar, do ponto de vista e da visão de mundo, com rara delicadeza. O cineasta alemão Wim Wenders, como um dos entrevistados, conta ter sentido falta de “frames” na época em que usava lentes de contato, pois, gostava do enquadramento oferecido pela moldura dos óculos. Maudie Lews (1903-1970) parece falar de algo semelhante quando diz que o que vê através das janelas já vem com moldura. Na delicada película “Maudie – sua vida e sua arte”, de 2016, a diretora irlandesa Aisling Walsh, conta a história de vida dessa artista que viveu grande parte da sua existência na pobreza e que, antes de ser reconhecida por sua arte, era considerada incapaz, por sofrer de dores e limitações motoras por conta de uma doença reumática. Desacreditada pela família, Maudie seguiu um caminho de busca por autonomia que a fez se submeter ao autoritarismo de um homem solitário e rude que, em busca de uma empregada, aceitou que Maudie cuidasse de sua casa. Apesar do desrespeito com o qual foi tratada em grande parte da vida, a percepção colorida e esperançosa de Maudie, trouxe para a cena uma certa rebeldia, uma certa insubmissão ao mundo cão, no qual estaria fadada a ser destituída de sua condição de sujeito desejante. Quando o patrão, que posteriormente tornou-se marido, pediu que deixasse a casa limpa e bonita, ela passou a pintar flores e pássaros nas paredes. Através das janelas, despidas de venezianas, a protagonista ficava espiando a vida e, num breve intervalo de tempo, já começava a desenhar, com tintas coloridas, no suporte que parecia produzir um anteparo entre sua força vital e as agruras das condições precárias de sua existência. Assim, foi sendo construído, entre ela e o mundo, uma tela protetora, transparente, de vidro, que ao desenhar e colorir na superfície perspícua, capaz de produzir percepções sempre generosas e que vão na direção de cuidado para com os outros, mesmo aqueles e aquelas que um dia foram violentos, em seus preconceitos em relação à ela. Maudie deixava para o lado de fora da moldura, a dor e a violência, enquanto pintava (e, assim, criava) um mundo com as cores que queria.
É a moderna, cosmopolita e elegante Sandra, interpretada por Kari Matchett, quem primeiro reconhece as habilidades artísticas de Maudie que, ao reparar nas pinturas da parede da minúscula casa, identifica beleza no desenho e nas cores de uma galinha feliz. É essa amiga, que vem de um mundo tão distante do da artista, que compra seu primeiro quadro e começa a vender e divulgar sua pintura.

Nas minhas reminiscências afloradas, relaciono esta bela forma de falar das percepções humanas na película Maudie, ao livro “Istambul: Memória e Cidade”, escritos autobiográficos de Orhan Pamuk, no qual há a referência à Uzun, um sentimento melancólico que parece abraçar todos os Istambulus. O ganhador do prêmio Nobel diz que ficava horas observando, através do vidro da janela da casa de seus pais, a rua da sua cidade natal, até que o vidro ficasse embaçado com sua própria respiração, e aí, ele seguia para brincar, quando criança, e para escrever, quando adulto. Aliás, a criatividade do escritor e a invenção de brincadeiras na infância estão relacionados à capacidade humana de transformar desejos insatisfeitos em força propulsora para a construção de fantasias psíquicas que visam modificar a percepção e, quiçá, alterar a realidade, conforme indicado no texto “Escritores Criativos e Devaneio” de Sigmund Freud (1976). Nas palavras de Pamuk (2007):
“Janelas embaçadas me fazem sentir hüzün, e ainda adoro me aproximar dessas janelas para traçar palavras nelas com a ponta do dedo. À medida que dou forma a palavras e figuras na janela embaçada, a hüzün dentro de mim se dissipa e consigo relaxar; depois que acabo de escrever e desenhar posso apagar tudo com as costas das mãos e olhar para fora […] (PAMUK, 2007, p. 98-99).
Há um tempo de transição entre o afeto e a percepção da realidade, num espaço entre mundo interno e externo, espaço no qual reside a criatividade através da qual o escritor desenha e forma palavras, no suporte que o vidro transparente oferece. Pamuk começou a desenhar quando criança, arriscou pintar alguns quadros, mas a sua arte floresceu na produção literária.
No caso da protagonista do nosso filme, é na pintura que encontra caminho de invenção e expressão subjetiva, também encontrando janelas, a serem suportes para desenhos, como facilitadoras de seu encontro no/com o mundo externo. Quase ao acaso, começou a pinta-las, assim como as paredes, da sua pequena casa, quando era acometida por uma tristeza profunda, seja advinda das dores crônicas, provenientes da artrite reumatóide, seja da relação conflituosa com seu “patrão machista” que vai se transformando em marido afetuoso, ainda que misógino, no decorrer do filme. A arte vai tomando conta de sua casa, de sua vida e sensibiliza pouco a pouco seu empedernido companheiro, assim como as pessoas que deles se aproximam. As cenas mais bonitas do filme são as que retratam a artista olhando pelo vidro da janela e pintando formas coloridas como modo de criar outro mundo possível. Das pinturas e desenhos coloridos nas paredes da casa e nos vidros da janela para os pequenos cartões e para telas feitas de restos de madeira que ela catava ao redor da casa, nasce uma reconhecida artista que tem obras encomendadas por importantes políticos de sua época, que ganha espaço na mídia e fama internacional, até o filme sobre sua vida, lançado em 2016. Em grandes atuações de suas carreiras , Sally Hawkins e Ethan Hawke, dão vida a um casal que deixou que a arte e as cores invadissem seus cotidianos cinzas.
Há na película um belo exercício da arte que imita a vida!
FREUD, S. Escritores criativos e devaneio (1908). In: SALOMÃO, J. (Org.).
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
Edição Standard Brasileira, v. 9, p. 147-158
JARDIM, J. e CARVALHO, W. Documentário Janelas da Alma (2001)
PAMUK, O. Istambul: memória e cidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
