Quantos “Crimes de Família” ainda serão necessários para desconstruir a opressão contra mulheres?

Por Adriana Domingues, Ana Lucia Gondim Bastos e Jaquelina Imbrizi

Eu não sei vocês, mas nós adoramos produções cinematográficas que apresentam protagonistas que dão uma guinada na sua posição subjetiva, de modo a mudar a trajetória de suas vidas, seja no início, no meio ou no final da narrativa fílmica. Trata-se do turning point que se relaciona à possibilidade de transformação de uma história que sempre pode alcançar uma escolha ética das personagens, uma mudança de postura que envolve a singularidade da personagem e que traz consequências para um coletivo e transformações para toda a sociedade. Este tipo de produção cinematográfica poderia transformar o espectador e a espectadora, por meio de um tipo de identificação com a protagonista (e/ou uma experiência estética, um acontecimento), que funcionasse como uma interpelação ao sujeito diante de modos de vida que repetem um círculo de violência e de violação de direitos? 

Depois de assistirmos à película argentina baseada numa história real, Crimes de Família (Schindel, 2020), muitos filmes que trazem essas viradas de possibilidades subjetivas do protagonista vieram a nossa mente, refrescando a potência do cinema para convidar-nos a transformar e construir uma sociedade igualitária e aprazível para todos, todas e todes.

Há uma lembrança específica  de uma das autoras, e que se refere à sua extensa carreira como cinéfila, relacionada ao impacto produzido em sua subjetividade pelo filme macedônio “Antes da Chuva” (Milcho Manchevski, 1994).  O filme retrata a trajetória de um reconhecido fotógrafo internacional, especializado em imagens retiradas de zonas de conflito, que é obrigado a fotografar uma pessoa no momento de sua morte, e que acaba de desfalecer após receber um tiro de um inimigo no contexto das guerras dos Balcãs. Este protagonista, sob o impacto do acontecido, abandona sua carreira internacional como fotógrafo, retorna à sua cidade natal em busca de familiares, amigos e a antiga namorada em sua terra devastada. A sua pátria está totalmente destruída pela guerra, no caso, por conflitos religiosos que transformaram, de um dia para o outro, amigos de infância em inimigos mortais. Além da guinada na trajetória do protagonista e os questionamentos sobre guerra e violência, há também um modo de contar a história, um roteiro que produz a impressão de um tempo circular transcorrido em três episódios independentes que, eventualmente, se misturam entre si e revelam o ciclo ininterrupto e repetitivo da violência. A memória subsequente à saída do antigo Cineclube Elétrico, ao descer a Rua Augusta, depois de assistir ao filme, é a de matutar, tentando juntar os cacos daquela história para forjar uma sequência linear do roteiro, praticamente, inexistente, e tentando compreender quais forças produzem a guerra e destroem um país em tempos instantâneos. O protagonista do filme, em seu turning point,  deixou uma interpelação na cinéfila com gosto amargo de fel, pois a fez avistar vidas miseráveis em lutas inúteis que perpetuam um ciclo de violências no qual há verossimilhança em seu cotidiano. Muito além dos seus desejos de paz e igualdade entre os povos, a espectadora se percebeu enredada dos pés à cabeça no ciclo violento que também assolava, e ainda assola, o Brasil.

É possível citar também o filme francês “A questão humana” (Nicolas Klotz, 2007), com o  maravilhoso ator Mathew Amalric, que protagoniza um psicólogo da área de Recursos Humanos de uma grande empresa de capital internacional. O protagonista percebe a mesma lógica perversa presente tanto nos critérios para a contratação de pessoal (ou na dinâmica da reestruturação produtiva da fábrica na qual trabalha cuja tarefa é escolher quem será demitido) quanto na racionalidade instrumental que desencadeou o genocídio nazista. Ao produzir esta articulação entre modos de pensar, ele desiste da carreira e vai trabalhar em uma pequena clínica para cuidar de pessoas fragilizadas e que sofrem preconceitos diante da corrida produtivista para o progresso na sociedade capitalista. A guinada deste protagonista deixa no espectador a sensação de como é fácil se enredar na engrenagem perversa do sistema neoliberal e quão difícil é resistir à ela: é preciso muita energia para se desvencilhar do fascínio de um bom emprego e um elevado salário no capitalismo selvagem (Imbrizi & Martins, 2015). 

Ou, ainda, o filme “A vida dos outros” (Florian Henckel von Donnersmarck, 2006), que retrata o espião treinado para delatar e ajudar a prender os inimigos do comunismo, mas que pela convivência cotidiana se sensibiliza e se identifica com o casal apaixonado de artistas. Arrisca, assim, sua vida e perde a chance de ascensão na carreira de espionagem, ao desistir de delatar aquelas pessoas que o tocaram profundamente. O protagonista é afetado pela beleza da arte e pela leveza de um amor correspondido e tem sua história de vida e a coragem de subverter seu destino narradas em um livro pelo dramaturgo que teve a vida salva por ele. Ou seja, foi o turning point em sua trajetória de vida que evitou o risco de morte do dramaturgo progressista e suas possíveis consequências, que seria o desaparecimento de sua arte.

Mas, é claro, não só os  protagonistas operam grandes viradas, e chegou a hora de falar dos roteiros que privilegiam as histórias de mulheres que mudam o rumo de suas trajetórias de vida. O nosso foco aqui será o já citado filme de suspense, argentino, que teve lançamento em 2020, dirigido por Sebastián Schindel, que resgata o ambiente cotidiano das relações entre a patroa e sua empregada doméstica. Trata-se da película intitulada “Crimes de família” (2020) e que vem na esteira dos filmes expoentes sobre a temática tão cotidiana e cujas protagonistas são marcadas pelos constrangimentos inerentes às relações hierarquizadas e naturalizadas entre patroas e empregadas.

No Brasil, nós temos o maravilhoso filme “Que horas ela volta?” (2015) dirigido por Anna Muylaert, que reatualiza, em primeira mão, o nosso passado escravocrata com o patrão tentando seduzir e abusar sexualmente da filha da empregada, que ocupa, provisoriamente, o “quartinho da empregada” daquela que é considerada “quase da família”. No filme, a atriz que incorpora a empregada doméstica, Val,  é a impagável Regina Casé, protagonista que, apesar de ser humilhada cotidianamente,  coloca a patroa num pedestal de admiração. Val suporta todos os constrangimentos de forma resignada e passiva por conta do dinheiro que precisa mandar para a filha, Jéssica (interpretada por Camila Márdila), que mora em sua cidade natal com parentes, pois no quartinho de empregada só cabe uma serviçal. Por outro lado, nutre amor maternal pelo filho da patroa, cuidado por ela desde a infância e que tem praticamente a mesma idade de sua filha. Mas é a visita de Jéssica, que vem para a cidade para prestar vestibular, que causa estranhamento e rebuliço nas relações de exploração naturalizadas e começa a questionar as relações estabelecidas no tradicional “lar doce lar” da burguesia paulistana. A guinada da personagem de Casé está em sair da posição de subserviente em relação à patroa em direção a busca por uma casa para chamar de sua, morar e cuidar da filha e do neto. O destino social pré-estabelecido e naturalizado é quebrado e agora a filha da empregada doméstica se prepara para ser arquiteta e o neto será cuidado pela própria mãe e pela avó. Ao espectador fica a reflexão sobre a arquitetura dos apartamentos que, tomando como modelo as Casas Grandes (2014), guardam um ambiente na área de serviço para o minúsculo quarto das empregadas, latejantes na nossa consciência social tal qual os chamados “elevadores de serviço”.

Neste ponto, vale lembrar  do mexicano “Roma” (2018), dirigido por Alfonso Cuarón, cuja protagonista também é uma empregada doméstica que passa os dias limpando a garagem da casa que está suja cotidianamente pelos dejetos “do cachorro do dono da casa” (com o perdão do trocadilho).

Que bela safra de mulheres protagonistas que contam uma narrativa “escovando” a história a contra-pelo – segundo a expressão do filósofo Walter Benjamin – que se refere ao dar voz aos esquecidos e vencidos da história. As protagonistas agora são as empregadas domésticas cujas narrativas denunciam situações de exploração, mesmo sendo “quase da família”, nos quartinhos que se misturam com os dos animais domésticos. Os próprios termos doméstica, ou criada, têm uma raiz na desumanização dos escravos que serviam à Casa Grande e ficavam à disposição das sinhazinhas, tão importantes quanto os animais de estimação ou móveis da casa, “como criados mudos”, cuja designação pejorativa deve ser substituída pela mais aprazível “mesinha de cabeceira”. Ah, até a nossa língua portuguesa também precisa ser revista com vistas ao respeito irrestrito a todos os viventes!!!

A novidade do nosso filme aqui em tela, “Crimes de Família”, é que seu suspense se estabelece em torno de mais de um elemento em jogo no encobrimento da violência contra a mulher. Traz a mulher que apanha e é estuprada pelo marido (Sofía Gala Castiglione que interpreta Marcela Sosa), a mulher que ocupa o quartinho de empregada cuja voz (muito menos o lamento) é ouvido (Yanina Ávila a protagonista que interpreta Gladys Pereyra)  e a mulher dona da casa (Cecilia Roth no papel de Alicia Campos) cuja única função é pedir a ajuda de Gladys para cuidar do grande apartamento impecavelmente organizado. Em alguns casos, sabemos, a escolha da gravidez para mulheres fica fora dos horizontes das possibilidades, seja porque foram violentadas por homens que ocupam lugares de poder, seja porque têm poucos conhecimentos sobre métodos anticonceptivos. Por outro lado, o infanticídio é tema tabu e desde a época da caça às bruxas, na Santa Inquisição, é o predicado mais utilizado  para incriminar e eliminar mulheres da face da terra (Federici, 2019). Para além dessas questões espinhosas que relacionam dominação violenta com possíveis narrativas de maternidade, o filme também engloba outras relações de opressão que dizem respeito às desigualdades sociais espelhadas no microcosmo de patroa e empregada, dos abusos sexuais dos patrões em relação às serviçais, em situação de fácil acesso por dormir no minúsculo quartinho no fundo do apartamento. A questão estético-política, na película, explicita as desigualdades econômicas entre as protagonistas, do cabelo loiro bem alinhado ao botox no rosto de uma das protagonistas, a patroa magistralmente interpretada por Cecília Roth (a inesquecível mãe que perde o filho adolescente em um atropelamento em frente ao teatro cuja peça em cartaz era protagonizada pela atriz favorita do adolescente morto,  no filme “Tudo sobre minha mãe” -1999 – de Pedro Almodóvar) ao rosto quase deformado criado pela expressão que a ótima atriz Yanina Ávila constrói, com a boca um pouco torta, ao compor a personagem da outra protagonista, a empregada doméstica chamada Gládys Pereira, que causa uma sensação de que estamos diante de alguém com algum tipo de deficiência intelectual (de qualquer modo, a dimensão sociopolítica do sofrimento psíquico, ali configurada). A loira de cabelos sempre milimetricamente pintados e vestimenta impecavelmente combinando com os acessórios, para o cabelo castanho curto e opaco, de postura curvada, roupas rotas e pele manchada dão o tom para explicitar o abismo que separa as duas protagonistas. A maçante forma como a patroa incessantemente chama e clama pela empregada em qualquer hora do dia e em qualquer cômodo da casa é, no mínimo, exasperante para o espectador. Cenas de tribunal e uma crítica social contundente também nos aguardam na película e não deixam para trás as interpelações à nossa consciência política presentes nos filmes brasileiros e mexicanos citados acima. São filmes que, sensivelmente, escancaram as mazelas das empregadas domésticas nas américas central e latina. Ao estilo da afirmação de Preta Rara (2019) são películas que denunciam que: “a senzala moderna é o quartinho da empregada”.

As desigualdades sociais, econômicas e de gênero, assim como a desigual forma de viver a maternidade, atravessam o filme o tempo todo. Sentamo-nos diante do tribunal para julgar dois crimes: o infanticídio cometido pela empregada e o estupro cometido pelo filho da patroa. No primeiro crime revela-se uma história que é a de muitas mulheres que saíram de suas casas e família para limpar e cuidar da casa e da família de outras mulheres que podem lhes pagar um quarto para dormir e três refeições ao dia. Na história da empregada Gladys há a morte precoce de sua mãe, a violência de seu pai, os abusos sexuais da infância e uma vida sem voz e sem desejo. O infanticídio, que parece, foi cometido após uma gravidez fruto de estupro que não pôde ser contada e só lhe coube ser recusada, é questionado do ponto de vista psicológico, pois, qual mulher desejaria criar um filho nascido em tais condições? No segundo crime julgamos o filho da patroa, um jovem de classe média acusado de agredir e violentar sexualmente a ex-companheira, mãe do seu único filho. Em sua história, vemos um jovem criado nas melhores condições socioeconômicas, que contava com o incentivo e compreensão dos pais à realização de todos os desejos e deslizes cometidos na vida, até mesmo para comprar as provas que o incriminavam neste julgamento. Um exemplo cabível de como há moldes societários seguidos  por mães amorosas para criar filhos machistas que, vez ou outra, se transformam em monstros pela forma como se relacionam com as outras mulheres.  Dois crimes cometidos em uma mesma família, mas com reações diversas: apega-se à moral e à religião para condenar o fato da empregada, supostamente, ter matado o próprio filho, dádiva de Deus, e recorre à corrupção e ao suborno para inocentar as inúmeras violências cometidas pelo próprio filho. Dois pesos, duas medidas, duas maternidades e duas classes sociais determinam o crivo utilizado para acusar ou inocentar os que estão sendo julgados. 

Não vamos abrir aqui como se dá a guinada das protagonistas, do nosso filme, para deixar o espectador com água na boca e com muita vontade de assistir um bom exemplar do cinema argentino contemporâneo. O que resta para os espectadores, parece, é a impressão indigesta da desigualdade social e econômica que pauta as relações afetivas contemporâneas e a pergunta “assaz capciosa” que ecoa incessantemente: Quantos  “Crimes de Família” ainda serão necessários para desconstruir a opressão direcionada à algumas mulheres e, especificamente, àquelas consideradas “quase da família” que exercem as funções de empregadas domésticas espremidas e constrangidas nos quartinhos das áreas de serviços dos apartamentos e Casas Grandes?

Referência dos filmes:

Antes da Chuva (Before the Rain), dirigido por Milcho Manchevski, de 1994.

A vida dos outros (2007) dirigido por  Florian Henckel von Donnersmarck.

A questão humana (2007). dirigido por Nicolas klotz

Tudo sobre minha mãe” (1999) dirigido por Pedro Almodóvar

Casa Grande (2014) dirigido por Fellipe Barbosa

Que horas ela volta (2015) dirigido por Anna Muylaert 

Roma (2018) dirigido por Alfonso Cuarón

Crimes de Família (2020) dirigido por Sebastián Schindel

Referências bibliográficas:

Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa. Editora Elefante, 2019.

Imbrizi, Jaquelina Maria & Martins, Eduardo de Carvalho. Narrativas de si: contribuições do cinema para a pesquisa e transformação social. Revista Interface, Edição nº 10, dezembro de 2015 – p. 22-39.

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