Filme Bad Roads: como regressar, retornando pela mesma estrada destruída pela guerra, para recuperar a nossa humanidade perdida?

Por Adriana Domingues, Jaquelina Imbrizi e Julia Bartsch

A guerra na Ucrânia, eclodida recentemente com ataques do governo russo a este país, levantou uma série de questões sobre suas consequências ao ocidente, além de uma onda de solidariedade aos milhões de pessoas que vivem naquele território e que buscam escapar de um conflito armado. Há muitos refugiados a procura de abrigo e estes são classificados como mercadoria: os negros são menos aceitos em determinados países, quem tem dinheiro atravessa as fronteiras por linhas aéreas, quem nao tem  faz o trajeto a pé e enfrenta milhares de obstáculos. Já tínhamos, em alguma medida, notícias de conflitos armados acontecendo ao leste do país desde 2014. Donbass, ou a Bacia de Donets, está nesta região, onde paramilitares separatistas pró-Rússia reivindicam um governo independente, o que chegou a ser reconhecido como tal pela Rússia.  E é nesta região que se desenrolaram as quatro histórias do filme Bad Roads. Esta película torna-se não apenas essencial para compreender esta guerra atual, mas também para refletir sobre as relações humanas num contexto que coloca frente a frente a violência e a paz.

Lançado em 2020 e, vale destacar, foi dirigido por uma mulher, a dramaturga e roteirista ucraniana Natalliia Vorozhbyt, natural de Kiev, capital da Ucrânia. O roteiro, adaptado de sua própria peça teatral, encenada em 2017 no Royal Court Theatre em Londres, revela o ativismo da diretora e as experiências que vivenciou nos protestos do Euromaidan em 2013 e no Teatro dos Deslocados, fundado por ela para que refugiados de Donbass contassem suas histórias. O filme é o retrato de uma guerra que se tenta vencer pelo afeto amoroso que ainda pode existir nos tensos encontros que se dão em zonas de conflito. Os episódios, embora independentes uns dos outros, são levados por um sutil fio condutor, no qual as narrativas buscam apontar pessoas distintas vivendo histórias em comum. Vemos e ouvimos os símbolos da guerra: armas, soldados, guaritas, bombas. Ou um silêncio que amplifica os sons de um espaço que já deixou de ser, como o gotejar torturante da torneira no spa desativado no terceiro episódio, o cão que ladra no último ou o som do carro seguindo por uma estrada de cascalho na primeira e árida cena que abre o filme. Essas justaposições passam a trazer algum clima de tensão em cada uma das estórias, que talvez pudéssemos chamar histórias, ao evocarem algumas realidades. Como num conflito entre Thanatos e Eros, vemos a iminência de que alguma violência poderá acontecer em cada um dos episódios, a despeito da tentativa de despertar nas personagens mais encrudescidas o que ainda poderia lhes restar de afeto. Eros e Thanatos se confundem, no desejo da morte e dominação do outro, em nome do próprio gozo. Freud (1932), ao responder a Einstein sobre o porquê da guerra, prefere substituir a palavra ‘poder’ pela palavra ‘violência’. Entretanto, veremos a luta de poder se manifestar tanto pela violência como pelas tentativas de resgate do amor através das palavras e das memórias afetivas.

No primeiro episódio, o carro segue rumo a um ponto de controle entre territórios. O automóvel, dirigido por um diretor de escola, é parado por um soldado, que pede documentos ao condutor. O que seria um procedimento padrão passa a ser uma sucessão de questionamentos que tentam trazer alguma lógica àquele encontro.  Equivocadamente, o homem entrega o passaporte que pertence à sua esposa e diz não encontrar o seu. Explica que, apressado, apanhou o passaporte sobre a geladeira sem se dar conta. Uma exigência de identidade para que ele possa atravessar aquele ponto, tomado pelos separatistas. Uma identidade perdida é motivo para o aumento do tom do diálogo, com a entrada do superior do soldado. O homem, um alegado professor escolar, diz transportar material de ensino. Entre eles, uma reprodução de um fuzil de guerra que, segundo ele, seria para treinamentos militares. A falta de passaporte o impede de seguir, assim como ser um professor em tempos de guerra faz pensar em sua própria identidade como tal. Ele avista uma menina, que reconhece sendo como uma de suas alunas. Ela se esconde e os soldados negam sua presença. Não será difícil ao espectador associar a presença da jovem às violências sexuais às quais as mulheres são submetidas em tempos bélicos. O professor insiste, conta ela ser uma pobre menina órfã, criada pela avó. O militar insiste em negar sua existência. Ao deixar o ponto de controle, o curioso diálogo entre os dois militares os torna opostos na essência: enquanto um dizia ter adquirido na escola a habilidade de desmontar rapidamente uma arma, o outro revelava ter aprendido francês. Logo o francês, a língua do amor. O professor regressa, ao ter encontrado seu passaporte, mais uma tentativa infrutífera de tentar resgatar a menina e sensibilizar os pais de família transformados em algozes na guerra. Parte, sem ela.

Neste ponto, como em um cenário onírico, o regresso do diretor pode ser o ponto nodal da narrativa que atinge conotações absurdas. Como alguém depois de escapar da iminência da morte, retorna ao mesmo lugar só para mostrar o seu passaporte que finalmente foi encontrado no chão do carro? Ainda mais com o propósito de convencer os seus algozes a libertarem uma adolescente? Da personagem parece emanar uma humanidade tão ímpar,  mas que se choca com tamanha ingenuidade, pois parece não ter identificado o contexto no qual está inserido. Tempos sombrios nos quais as jovens são objetificadas e violentadas por guerreiros em nome de uma pátria idealizada que lhes colocaram em territórios fictíciamente apartados. Um dos soldados, responde de modo ameaçador ao diretor, como ele pode insinuar que há abuso sexual á garota, já que ele é casado e tem filhas adolescentes. A diretora aponta o esforço psíquico para fazer a manutenção dos laços bélicos, é necessária tal clivagem psíquica para se sobreviver em uma guerra, pois não há os mesmos traços de humanidade entre a adolescente objetificada para uso sexual e a filha amada do soldado.

Um ponto de ônibus em frente a uma pequena loja de conveniência será o cenário do episódio seguinte. Um grupo de três meninas adolescentes espera por seus homens. O hábito de fumar, como uma simbólica entrada na vida adulta, está ali. Trocam cigarros e isqueiros. Mexem em seus celulares. A terceira menina é arisca e sua interação com as outras é permeada de tons ríspidos. O homem que espera existe apenas para ela, mas ela se defende de quem o tente lhe dizer. As duas jovens partem e seguem suas vidas, deixando-a só. Vemos o entardecer e a noite chegar. A solidão da espera inútil é quebrada pela chegada de sua avó, que a cria desde a morte da mãe, o primeiro laço com a história anterior, embora esteja claro que não se trata da mesma menina, mas sim de mais uma história que pode se repetir das órfãs da guerra. Num gesto de afeto, leva-lhe sopa, conta que naquele mesmo ponto, anos atrás, ela mesma esperava, junto de suas amigas, o seu homem. Pede à neta que volte para casa com ela, que recusa, ainda que as sirenes gritem a chegada do perigo e incentivem a população a procurar abrigo. Ela não quer voltar, escolhe ficar naquele ponto, mais do que um ponto em que ônibus já não passam mais, é local de espera de um futuro fantasiado. O que ela deseja está do outro lado, o homem que deseja é inalcançável, é o inimigo. Entendemos que este homem sequer conhece a existência desta mulher que o ama. O desejo pelo impossível é o que permite a manutenção da fantasia. Ao ser realizado, ela, a fantasia tão perfeita e moldada a nosso bel prazer, deixa de existir. Amar o soldado inimigo que nunca chegará cumpre essa finalidade. A avó, ao tentar separar ‘eles e nós’, fracassa. O homem esperado, como a jovem diz, é ‘dela’. Na sua fantasia, seu amor é maior do que a violência que impede a realização do seu desejo. A avó tenta desconstruir sua ilusão, ou seria ingenuidade? Com clareza a avó sabe quais são os jovens que estão mais destinados para a morte e quais estariam mais protegidos, por conta de suas nacionalidades ou por conta de suas melhores condições de luta pela sobrevivência.

O terceiro e mais longo episódio é particularmente brutal. Num espaço que outrora foi de descanso ao corpo da vida quotidiana, um spa destroçado serve de cenário para que um soldado mantenha refém uma jovem jornalista, violentando-a sexualmente, degradando-a moralmente e fisicamente.  Ele reivindica para si a figura perversa, exalta o prazer através da dor de sua vítima. Esta, por sua vez, diz que o ama. Sabemos que o faz como estratégia de sobrevivência. Nela, também reside o ódio. Ao estar ciente de que o prazer de seu algoz se dá por seu desprazer, ela finge prazer. Cabas e Zack (1988) apontam que “o sujeito perverso está articulado de uma forma singular em relação ao desejo e à lei, na medida em que seu discurso e seus atos pretendem apenas dar conta do gozo e do amor”. Nessa cerimônia de culto a Eros, o corpo da mulher torna-se objeto de gozo ao soldado, na negação de um amor que entre eles não é permitido existir. A mulher diz amar, finge gozar, finge desejar. Sua arma contra a objetificação de seu próprio corpo é conseguir transpor a violência e chegar ao afeto com o qual o soldado não se permite encontrar. O silêncio daquele lugar só é quebrado pelo gotejar de alguma torneira e pelos rompantes do soldado no espaço onde a jovem está detida, determinado a feri-la e provar a ela que suas tentativas de romper o muro que o mantém isento de estabelecer laços afetivos é infrutífero. Ela recorre a memórias de infância, um lugar que, per se, é um poço de afetos. A lembrança de um outro ser, um animal de estimação, é por ela trazida, ao que ele destrói em sua própria lembrança de um hamster que ele teria esmagado até a morte. Ele descreve a cena com tamanha crueldade que nos leva a pensar se não seria mais uma maneira de destruir simbolicamente suas memórias afetivas e provar, mais uma vez, o quanto ele era mau. Teria ele realmente matado o animal? Ela conta, então, que havia atropelado uma galinha e por isso, teve que pagar uma soma aos donos que, segundo ele, seria muito mais do que realmente valeria uma galinha. Temos aqui a dica para o episódio seguinte. O que vemos ainda neste terceiro episódio, é um homem que despe suas vestes de soldado e se arruma para o encontro com uma mulher. Com roupas civis e o cabelo bem penteado, por sua vez despe a jovem jornalista, desfalecida em uma banheira. A banha suavemente, toca seu corpo com delicadeza, dá-lhe roupas limpas, as roupas que ele tinha, o que ele tinha, roupas de soldado. Os dois sentam-se na beira da banheira, imaginam-se em outro lugar. Por um instante, voltamos a acreditar no amor. Ela diz ter medo dele, ele diz, compreensível, que sabe disso. Eles se beijam e ela se afasta um pouco e pede para que ele fique como está e não olhe para trás. Como se naquela aridez de um ambiente destruído pela guerra, houvesse o relampejo de alguma surpresa que não fosse a da iminência da morte, mas ele se deixa enganar e se transforma em presa fácil. É com um golpe desferido na cabeça do homem que ela desfaz qualquer fantasia romântica de final feliz. Apressada, termina de se cobrir com as vestimentas de um bom soldado, um golpe final serve para certificar-se de que estará livre, seja do ódio, seja do amor daquele homem.

O quarto episódio se assemelha a um conto. Uma jovem mulher aproxima-se de uma casa que com características de moradia simples e é atendida por uma senhora.  Alega ter atropelado uma galinha que acredita pertencer aos residentes dali e se oferece para indenizar a perda. A senhora chama um homem, que entendemos ser seu marido. A boa vontade da moça logo torna-se oportunidade para o casal. Ela, movida pela empatia mobilizada por ter matado um animal, conta que perdeu um papagaio e entende o que significa essa perda. Sua referência, entretanto, distancia-se das representações tomadas por seus interlocutores. Ao perguntar se a galinha lhes pertencia, a hesitação da mulher é desfeita com a troca de olhares com o marido e assim, logo apressam-se em dizer que sim. Se no episódio anterior, o valor da indenização parecia uma estupidez, nesse conto o valor, inicialmente três vezes maior, já dá o tom de como se daria aquele encontro. Sem dinheiro em espécie, ela pergunta por um caixa automático. A reação jocosa do casal indica a precariedade daquele local. Obviamente não haveria nas imediações sequer um estabelecimento comercial. A moça, convicta de seu gesto de bondade, parte, prometendo regressar com o valor. Os valores morais são o que há de valor para ela e, efetivamente, regressa, para surpresa da mulher, que aproveita para criticar as falsas promessas dos políticos e assim, evidenciar sua descrença em todo o sistema. Em conjunto com o marido, vemos a tensão aumentar à medida em que mais dinheiro é exigido da moça, que chega a ser ameaçada de ser encarcerada pelo casal, visto que a polícia, mediadora da justiça, era ineficaz e só apareceria no dia seguinte. O surreal que vemos é resultado de uma realidade que se dá pela desigualdade socioeconômica  entre as partes envolvidas na cena. Extorquida em todos os bens que levava consigo, um alerta da rádio,  com um narrador ao fundo, noticia os efeitos da guerra e a presença dos militares na região. Tomada por este acontecimento é com um gesto final que a senhora traz de volta um alívio e uma esperança, devolvendo os pertences da moça. Esta, por sua vez, parte em seu carro de marca francesa e nós ficamos sós com os sorrisos, ao mesmo tempo irônicos e amedrontados, do  casal e o cão que ladra insistentemente. 

As duas personagens da primeira e última história, um diretor e uma jovem mulher retornam ao local do quase crime, regressam para insistir  em um possível diálogo com as pessoas que representam ameaças às suas vidas. É muita ingenuidade não acreditar no poder do ódio, não só em tempos de paz mas, principalmente, em tempos de guerra. Dois pacifistas forçados a conviver com duas duplas cínicas – os dois soldados na fronteira e o casal miserável – cansadas da guerra? Talvez!

 A imagem do regresso, já a tivemos construída ali atrás. A imagem, a seguimos vendo uma vez mais, nesse mesmo território. Na mesma já citada carta de Freud a Einstein, ele diz pensar “que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos.”. Pegar estradas ruins, uma obrigação necessária em nome da sobrevivência de nossos corpos, de nossos afetos e laços para que possamos garantir nossas existências. 

Talvez a diretora tenha pensado neste filme como um alerta para o mundo, como o aviso da rádio que impulsionou o gesto da senhora que a faz desinteressar-se da brincadeira perversa e liberar a jovem atropeladora de galinhas. Uma intenção artística que, por meio das técnicas da sétima arte, visa sensibilizar a comunidade internacional sobre as atrocidades que já aconteciam no território ucraniano. Não deu tempo! A guerra estourou por mais que nós ainda tentemos negá-la, como pacifistas ingênuas que negam o perigo iminente, que minimizam o fato que alguns homens não são bons e podem tratar seus semelhantes como objetos. Por outro lado, há um homem e uma mulher que regressam para tentar humanizar os seus algozes, para tentar, como uma gota de amor em mar de ódio, evitar o pior. Mas já não há tempo, pois a quem eles visam humanizar já estão corrompidos pelas atrocidades cotidianas. O filme termina abruptamente e não nos oferece solução ou redenção.

Um filme de guerra que explicita a situação das jovens sob o olhar de uma diretora. Aqui a guerra continua não tendo o rosto de mulher (ALEKSIÉVITCH 2016). São mulheres que continuam insistindo na importância da sopa para aquecer estômagos gelados, elas permanecem preocupadas mais com a morte da galinha do que com a situação de risco de vida na qual se envolveram, continuam trocando prazeres sexuais por migalhas dos seus homens, ou se colocam em campo favorável de visão de modo a serem percebidas e, quiçá, serem vistas pelo diretor para que fossem salvas de seu destino inexorável.

As três primeiras histórias trazem a baila as adolescentes, o estupro, a violência travestida em violação do corpo da mulher como forma de demarcar território e vencer o inimigo estuprando suas mulheres. A diretora compartilha conosco as histórias de cada uma delas que se misturam na tentativa de sobreviver de algum modo: órfãs, jornalistas prisioneiras, adolescentes em busca do amor romântico ou de uma bela troca de roupas, sementes ou sei lá o que o seu homem poderá dar a ela. As vinhetas abordam a forma como são invisibilizadas e humilhadas. Sua proteção e destino são objetos de negociação entre os homens, como se elas não existissem e tivessem vontade própria. Em tempos de guerra, são consideradas alvos fáceis e vulneráveis, submetidas a todo tipo de violência de gênero: exploração, assédio, estupro, escravidão sexual, gravidez, esterilização e aborto forçados, casamento e prostituição impostos em troca de alimentos para si e para os filhos.    

Vemos a violência sexual e o estupro como armas de guerra e que, assim como as mulheres, podem se tornar invisíveis. Em todos os relatos de mulheres que sobreviveram à guerra, há a constatação de que não foram alvo apenas de balas, mas de humilhação e tortura. O estupro, um ato conhecido e familiar em contextos de paz, é transportado para os campos de guerra como forma de exercício de poder e domínio sobre o corpo feminino diante daquela sociedade que se pretende dizimar. Um modo de impor o terror e destruir o inimigo, incluindo sua continuidade e sua dignidade, para fazer dele o que quiser. Os corpos das mulheres, em conflitos armados, tornam-se campos de batalhas, no qual sua violação tem muito mais a ver com jogos de poder, em função de sua origem étnica, do que sobre o sexo. Não se trata de ter ou não relações sexuais, mas de dominação e controle de um território e do corpo da vítima como mero anexo. A relação entre agressor e vítima se dá em razão de divergências identitárias e do desejo de limpeza étnica. Além de terem seus corpos objetificados, destituem-nas de suas identidades e da própria humanidade – uma tática de guerra sistemática, invasiva e oficialmente silenciada. 

Após os conflitos da antiga Iugoslávia, no qual estima-se que de 20.000 a 50.000 mulheres sofreram agressão sexual, os atos desta natureza foram considerados crimes contra a humanidade e formas de genocídio pelo Tribunal Penal Internacional. Recentemente, o Ministro das Relações Exteriores da Ucrania, Dmytro Kuleba, acusou os soldados russos do estupro de mulheres em territórios ocupados e pediu a criação de um tribunal penal especial para julgar o crime de agressão. Sabemos, também, que os homens ucranianos têm sido alvo do mesmo crime. 

Dos mais de 3 milhões que já deixaram a Ucrânia, o fluxo de refugiados é de maioria mulheres. São elas que garantem o papel de continuidade, não apenas das famílias que são desfeitas, mas da própria sociedade. Carregam consigo, pelo caminho da reconstrução de suas próprias vidas e a de seu povo, o trauma da agressão, agravado pelo silêncio sobre a violência sexual que ainda impera em muitos países. O sigilo e o silêncio funcionam, assim, como mais uma arma de guerra apontada contra elas, uma forma de normalização da violência de gênero a que são submetidas em tempos de guerra e de paz. Barbaridades que são ignoradas ou neutralizadas, assim como o preconceito e o racismo com pessoas negras que são impedidas de embarcar em trens para deixar o país ou não são aceitas nos países que demonstram solidariedade humanitária com os refugiados.

A repercussão da guerra na Ucrânia revela o colonialismo intelectual em que estamos submersos. Só conseguimos enxergar tanques e armas em países que são porta de entrada para a Europa, e não nos conflitos armados da África e Ásia Menor. O caráter europeu dos ucranianos, cristãos brancos de olhos azuis e cabelos loiros, suscita maior solidariedade que os demais povos em conflito. São pressupostos desta época em que a barbaridade da guerra ainda é uma maneira de desempatar os conflitos para os homens contemporâneos.

Não há mais como regressar e nós precisamos seguir em frente, parece ser o ditame capitalista! Não, a nossa diretora ainda tem forças para  apresentar um movimento contra hegemônico em sua narrativa fílmica e nos oferece um libelo sobre o regresso nas cenas de duas histórias: não há como seguir em frente se já não temos mais como encontrar um lugar seguro para todos, antes é necessário um gesto que recupere a nossa humanidade perdida. Nós precisamos começar do zero sem ingenuidades, enfrentando a violência que nos constitui e só aumenta em uma sociedade  competitiva que “ainda” se estrutura na exploração da força de trabalho e na dominação de uns sobre os outros. No caso das mulheres, cabe ressaltar que elas estão sendo exploradas social e sexualmente. Retornemos, regressemos  e enfrentemos o medo da mudança, pois há que se transformar as bases que nos sustentam no laço social, mesmo que para isso possamos cair no abismo já que estaríamos sem os pilares que, estes sim, precisam ser reconstituídos em outros valores. Comecemos a recuar, suspendamos os movimentos!!! Urge exercitar um “slow motion” para que não nos atropelemos, para que não atropelemos mais ninguém!

Referências:

AHMED, Sara. Viver uma vida feminista. São Paulo: Ubu editora, 2022.

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2016

BAECKERT, L.T. “Fui violentado por vários homens ao mesmo tempo”: o drama dos homens estuprados durante guerras. BBC News Brasil. Publicado em 20 de março de 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60495306. Acesso em 24 de março de 2022.

CABAS, C et ZACK, O.E. Genocídio: Dimensão mortífera do amor. In: Psicanálise de sintomas sociais (org. Rodriguez, S.A. et Berlinck, M.T.). São Paulo: Escuta, 1988

FREUD, S. Por que a guerra?(1932) In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, S. O mal-estar na civilização. (1930) Volume 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

JORNAL DO BRASIL. Ministro acusa soldados russos de estupro de ucranianas. Publicado em 4 de março de 2022. Disponível em: https://www.jb.com.br/internacional/2022/03/1036173-ministro-acusa-soldados-russos-de-estuprarem-ucranianas.html. Acesso em 24 de março de 2022.

OLIVEIRA, B.A. O estupro como estratégia de guerra em conflitos armados: a experiência do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia nos casos de violência de gênero. Brazilian Journal of International Relations, v. 8, n. 1, p. 97-116, jan./abr., 2019. 

REZENDE, V.M.; SMITH, A.S.P.O. Estupro em conflitos armados: respostas do Direito Internacional à violência de gênero. Anais do XXVIII Encontro Nacional do CONPEDI Goiânia. Gênero, Sexualidades e Direito II. Florianópolis: CONPEDI, 2019. 

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