Filme – Aquarius

Por Ana Lucia Gondim Bastos

 

“Hoje

Trago em meu corpo as marcas do meu tempo

Meu desespero, a vida num momento

A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo…

 Hoje

Trago no olhar imagens distorcidas

Cores, viagens, mãos desconhecidas

Trazem a lua, a rua às minhas mãos,

 Mas hoje,

As minhas mãos enfraquecidas e vazias

Procuram nuas pelas luas, pelas ruas…

Na solidão das noites frias por você.

 Hoje

Homens sem medo aportam no futuro

Eu tenho medo acordo e te procuro

Meu quarto escuro é inerte como a morte

 Hoje

Homens de aço esperam da ciência

Eu desespero e abraço a tua ausência

Que é o que me resta, vivo em minha sorte

 Sorte

Eu não queria a juventude assim perdida

Eu não queria andar morrendo pela vida

Eu não queria amar assim como eu te amei.”

                                                                    Taiguara (Hoje)

E assim termina o mais novo filme de Kleber Mendonça Filho, Aquarius (2016), com a poesia de Taiguara sintetizando as três partes do longa que traz Sônia Braga no papel da protagonista Clara. Toda a narrativa vem costurada por uma excelente trilha sonora que está longe de ser pano de fundo da trama. Ao contrario, letra, música, autoria e, até, a mídia escolhida, e explicitada nas cenas, para transmiti-las (sejam fitas K7, vinis ou MP3), tudo conta da relação de Clara com sua história e com o contexto histórico. O mesmo acontece com os objetos que transformam e mantêm as referências de anos passados: os carros frágeis, coloridos e com placas amarelas dos anos 80 que dão lugar aos carros robustos, de cores sóbrias e de placas brancas; a cômoda que já foi do quarto e passa para sala como móvel decorativo, a TV que muda de espessura no decorrer do tempo, mas continua ocupando lugar na sala ou o aparelho de som que tem entrada USB, mas permanece conectado a um toca discos de vinil. As marcas do tempo no corpo, na casa e na cidade de Clara. Marcas da idade, do sol de Pernambuco, do desgaste, das ressignificações, da especulação imobiliária, do crescimento populacional, do câncer e da desigualdade social. Tudo tão familiar e, ao mesmo, tão estranho ao que já fora, um dia. Estranho, também, às expectativas, no passado, de como seriam as relações num futuro, sejam entre as pessoas, sejam com a cidade, sejam, ainda, com o próprio passado ou com a história daquele lugar e daquelas pessoas.

Estranho, em parte, pela imprevisibilidade que a história pressupõe e, por outro lado, pela decepção do rumo tomado por tal história. As desigualdades de forças sociais, são expressas tanto na relação de Clara com os inescrupulosos  donos da construtora que pretendem fazer do prédio – no qual ela contou sua história, até ali – um novo empreendimento imobiliário da Praia de Boa Viagem, mas, também, entre Clara e sua fiel e querida empregada, que vive na parte pobre da cidade. Sem um tom saudosista do tipo “no passado tudo era bem melhor”, Mendonça Filho nos coloca a refletir sobre o crescimento da incidência do câncer, no nosso modo de vida contemporâneo, seja do ponto de objetivo, seja metafórico. Seja individual, seja social.

aquarius1

3 comentários

  1. Ainda nao vi, mas com mais essa sua crítica favorável, estou cada vez mais interessada e curiosa. Dessa sexta não passa. Volto aqui pra deixar minhas impressões. Beijos

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